OS  "MANUÊS" DE DONA CLÉLIA

E então, estudávamos todos naquele meu inesquecível GRUPO ESCOLAR MOTA JÚNIOR num tempo do Curso Primário em cinco anos; esse mesmo tempo em que o Curso Primário completo tinha prestígio e respeito, comparável hoje ao prevestibular - o que me leva a pensar que na época ou a escolaridade estava em alta ou hoje, essa mesma escolaridade está em baixa. Mas isso aqui, agora, não vai ao caso.
O Grupo Escolar Mota Júnior,  cátedra e ourgulho de todos nós - do que a gente nem se dava conta - tinha à frente a implacável, segura, linha reta e timoneira chamada Professora Négile Atta, normalista, educadora, têmpera em ferro e fogo que, por si, não aceitava NOTA SETE como aprovação ao final do ano. Considerava "passar arrastado" e, tantas vezes, empenhava-se junto ao pai do aluno para deixá-lo reprovado. Doente, dois meses fora de aula, fui um desses, inclusive.
Ainda me lembro de todo um cenário daquele meu Grupo Escolar: das salas de aula; das professoras; do quadro-negro; do uniforme em  azul e branco. Meninos e rapazes  em calças curtas, moças-donzelas em saias plisadas, todos com as iniciais "M J" ao peito. Lembro-me  dos cânticos em hinos ao início  das atividades diárias: Hino à Pátria; Hino à Árvore,  Hino à Independência; Hino à Bandeira. Aqueles Cânticos faziam parte da cultura e do sentimento cívico-colegial, daquele meu tempo.
Lembro-me dos rigores da minha pranteada Diretora sempre com uma régua em mãos; da "campa" que sinalizava o início e fim dos horários. Lembro-me de uma árvore de ABRICÓ frondosa e frutífera que ficava ao fundo, bem perto da  gente  sem que ninguém pudessse jamais tocar em quaisquer dos seus frutos. Cheguei a esse meu Grupo Escolar já no terceiro ano primário, tinha sete anos de idade. E então lá se vão 62 anos de minhas lembranças.
Dentre os momentos que os guardo marcados na minha lembrança, era lá pelas  dez horas - A HORA DO RECREIO!  É aqui onde quero chegar! Esse é o mote que inspira este texto! A HORA DO RECREIO era uma festa! As moças em círculo de mãos dadas,  cantavam "cantigas de roda": SE ESSA RUA/ SE ESSA RUAS FOSSE MINHA / EU MANDAVA/EU MANDAVA LADRILHAR, COM PEDRINHAS, COM PEDRINHAS DE BRLHANTE/PARA O MEU, PARA O MEU BEM PASSAR".  Era um canto, alegre, festivo, inocente e romântico. Era a hora do recreio.  Era a hora da merenda!
Quem levava a sua merenda comia a sua merenda; quem não levava ou não tinha - assim como eu - ficava a ver os outros. E, só uns tantos compravam a sua merenda que chegava ambulante,  a tiracolo. Eram os BOLOS DE DONA CLÉLIA. É aqui aonde quero chegar. Joel era um "rapazote", uma espécie de serviçal ou "cria" de Dona Clélia. Chegava com uma vasilha  tecidas em "talas de guarimã" - que ali se chamava de "mala". Enfim, uma mala de doces. Doces em "quadrados". Bolos de trigo e outro que nem sei. Bolos de fubá de milho, estes que eram chamados de MANUÊ. Enfim "OS MANUÊS DE CONA CLÉLIA" -mais precisamente aqui, onde quero chegar.
Os manuês de Dona Clélia, naquela mala de doces conduzidos e vendidos pelo Joel, aquilo me exercia um terrível fascínio. Ah se eu pudesse e se dinheiro eu tivesse! O pátio do recreio com as meninas em cantigas de roda, restava relativamente pequeno, então eu estava quase sempre à beira da mala de doces servidos por Joel - sentindo o cheiro,  as tentações, a vontade perdida e as frustrações daquele meu tempo de Grupo Primário - oito anos, nove anos. Na hora do recreio, na hora da merenda. Ah se seu pudesse!!!
Guardo porém comigo, um momento único na hora do recreio, do qual 62 anos idos não conseguem me perdoar. A professora Helosina, junto à mala de doces de Joel separava seus MANUÊS. Exerci o olhar e o pensamento com tanta intensidade que a professora "leu a mensagem"; foi quando ela me estendeu um MANUÊ. Eu estava "marmanhando". E devorei-o com um sentimento de culpa. Afinal "marmanhar" àquele meu tempo era crime e pecado. Então até hoje os meus cabelos brancos insistem nessa mea culpa.
O mundo deu voltas, tantas voltas e agora... 61, 62 ,anos depois, olha o que cai nas minhas mãos! Olha! Um bolo de fubá de milho, igualzinho aquele de Dona Clélia! Cor... cheiro... sabor... Diferente apenas nos "quadrados", porém redondinho! Um quilo e tanto de bolo! Só meu, todinho meu!   Foi uma maratona semanal a serviço da devora só que agora, sem  qualquer sentimento de culpa. Ou como diria o Nelson Bandeira: uma "degustação" e tanta!
Escrevo sobre "OS MANUÊS" DE DONA CLÉLIA para reavivar e reacender as minhas próprias veredas; as vias estreitas, espinhosas e escorregadias que me fizeram passagem para chegar até aqui. Elas mesmas que fazem estes... CAMINHOS. E dedico este tema à Professora Maria Luiza Brandão, professora normalista "das antigas", leitora cativa e confessa destes... CAMINHOS POR ONDE ANDEI.

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