A arte deste escriba, por vezes, é uma fonte de surpresas; cheio de inesperadas situações onde não há, em princípio, uma direção a seguir. A primeira parte do texto abaixo, foi uma experiência vivida há uns doze anos, mas que escrevi e publiquei faz só uns dois anos. A segunda parte do presente texto que jamais sequer fora cogitada, de repente, compôs esta "cabeceira de mesa". Enfim, um trabalho do subconsciente que aflora neste texto.
"CABECEIRA DE MESA"
Era final de ano. Festão da entronização dos novatos em clube fechado. Somava-se às comemorações as festas de fim de ano. Comida e bebida derramando, na fartura. Para isso morreram bois, movimentaram-se contas. Dinheiro escorreu. Serviçais era tudo gente do clube fechado e então sentiam-se laranjas maduras esparramadas pelo chão naquele banquetão. E eu lá, convidado de ocasião naquele meio de mundo do "parazão". Penetra de oportunidade, mas vestido na camisa de convidado. E, como sempre, de olho no social.
Começa a solenidade, quer dizer o banquete. O chefe do clã vestia a camisa de mestre de cerimônia. Pediu silêncio à grande multidão que se espalhava no grande salão que mais parecia um galpão e começou a chamada: "Chamo Fulano de Tal" para compor a cabeceira da mesa. Chamo Sicrano de tal para compor a cabeceira da mesa. Chamo Beltrano de Tal para compor a cabeceira da mesa. E assim foram chamados tantos e tantos outros, sempre "para compor a cabeceira de mesa".
Eu ali, meio que perdido naquela multidão era como se me perguntasse: "cabeceira de mesa?". Aquilo não me era de ignorar e logo pude imaginar que a "cabeceira de mesa" era lugar de privilégio para os privilegiados; destaque para os destacados; honra para os honrados mas, a bem da verdade, não me era uma expressão comum.
O mundo rodou; tantas voltas rodou e hoje eu, mais envelhecido e quem sabe mais apanhado à razão, me ponho a recordar sobre aquela "cabeceira de mesa", na festa do "parazão" como que numa interrogação a mim mesmo: "cabeceira de mesa???" Pois é: cabeceira de mesa! Lugar de destaque para os destacados. Privilégio para os privilegiados. Pompa aos que fazem jus. E lá se vou eu pensando nesse bendito (?) ou maldito (?) lugar...
Pensamentos que vão outros que voam, e lá se vou eu desgarrado e sem lugar à cabeceira da mesa. E quando penso que não, caio dentro de um sindicato, de uma associação, de um clube de moradores, de um grupo de classe - desses que não têm na testa o que o periquito roa. Segundo a lenda, ali não corre vintém, muito menos tostão para quem manda ou representa, mas ninguém quer largar o osso - que é a "cabeceira da mesa". E então a cabeceira da mesa tem lá os seus encantos. Será o mando? O poder? As influências do social? Será o quê?
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Olho no tempo e vejo quanta "cabeceira de mesa" volta e meia a gente vê por aí. Nas esferas policiais, ou militares ou judiciais, bem como nos entes municipais as "cabeceiras de mesa" estão sempre mais que presentes na vida, na mídia e no dia-a-dia da cidade e dos cidadãos. Chama-me atenção, no entanto, a ciranda de roda ou a roda da ciranda que é essa famigerada "cabeceira de mesa". Tento explicar: chega um comandante, senta-se à cabeceira da mesa e a imprensa corre pra cima, cerca-o. bafeja lisonjas e louvaminhas abana-o, até. E haja talco, confetes e serpentinas! E o cara vira celebridade de uma hora para outra. Um paparico das estrelas! Entrevistas, reportagens, convites, solenidades, bafejos, amigos, tapinhas nas costas e outras "mumunhas".
Um delegado regional esse então???!!! E, se o cara for chegado às luzes da ribalta - como da atualidade - aí é notícia e entrevista sete dias na semana, trinta dias ao mês, trezentos e sessenta e cindo dias ao ano. E haja cabeceira de mesa! E põe cabeceira de mesa nisso! Havia um tempo o pessoal da Rodoviária, na BR, ali depois do frigorífico, não era lá tanto de aparecer. Mas... aí... veio a mídia e provou por A + B que "paparico" dá resultado, expõe os fatos, mostra as imagens e o verbo e serve ao povo. E, acima de tudo, mostra a cara de quantos sentam-se à cabeceira de mesa. E lá se vai girando a ciranda da roda.
Gil de Campos, um quilombola e bandoleiro que o conheci já alquebrado ainda nas minhas primeiras letras ao tempo da palmatória e que serviu como guerrilheiro do Governo, na Guerra de Canudos, na Bahia, em combate contra os fanáticos de Antônio Conselheiro - ao invés de dizer a palavra quartel, ele falava "...nos quarté", referindo-se à sua milícia, ao seu quartel, elevando-o nas alturas, contando vantagens, narrando bravatas, passagens e combates desastrosos e sanguinários - que a molecada do meu tempo ouvia boquiaberta, em silêncio. E Gil de Campos, ali, era o cara da "cabeceira de mesa".
Volto num lampejo de lembrança, aos cinco, seis anos de idade e vejo Gil de Campos e o seu "quarté". E me permito ver quanta "cabeceira de mesa" e luzes da ribalta e holofotes mil para o comando do quartel por aqui. Cada um novo comandante que chega é o novo "dono da bola". Todo o santo dia do ano tem sempre uma ou mais pautas por lá. E em matéria de notícia, de informação, de interação, da ações policiais-militares, de índices redutores de criminalidade, aquilo sim: um verdadeiro garimpo!!! E haja cabeceira de mesa! Nas entrevistas, nas solenidades, na vida do social e do quotidiano.
Depois, quando chega o novo "dono da bola", aquele que um dia sentou-se à cabeceira da mesa, logo desaparece e é esquecido. E o que é pior: parece que nem existiu. E aí é mais um "estaleiro" ou uma "geladeira", como na linguagem do meio. É aí onde não acho justo. É aí, no resumo da ópera, onde vejo que as luzes da ribalta, as pautas diárias e os mil e um holofotes são um aproveitamento de ocasião. Uns que aproveitam; outros que são aproveitados e todos que tiram proveito disso. Fazer o quer o quê, não é? Essa é a maldita ciranda da "cabeceira de mesa".
* Viegas é advogado e questiona o social
Edição Nº 14949
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