Tenho incontáveis temas perdidos na mente. Temas que os "escrevi", deixei-os esquecidos e perdi. Cumpre-me explicar: a missão de "escriba" semanal e voluntário, desempregado mas comprometido, me leva a um obrigatório exercício da mente. Quase todas as noites, antes de dormir ou acordado noite a dentro, então me pego à procura de um tema, de um texto. E "viajo" no tempo e no espaço à procura de fatos, lugares, pessoas - passagens que se foram - marcas do que ficou.
Nem sempre as lembranças me conduzem ao texto, ao tema. Nem sempre os personagens colaboram, rendem. Outros, porém, são verdadeiros "achados"! E, quando dou por mim, por um exercício que tenho desenvolvido com o tempo, vou "escrevendo" na mente. Por vezes "escrevo" o tema inteiro, completo. Por vezes fico perdido, divagando pelo meio do caminho. Coisas da mente.
Dizer que "escrevo" o tema é mais uma força de expressão, visto que, dias depois, quando vou passá-lo ao papel, quer dizer, quando vou escrever na realidade, o texto que "escrevi", ainda que na lembrança, serve apenas de pano de fundo para o tema propriamente dito. É, na verdade, apenas uma "figuração", mas é justo essa figuração, esse imaginário que me dá os contornos, a ideia, o contexto que servirá ao texto. Coisas da mente!
E assim vou tocando nas noites acordadas; nas madrugadas insones, nos meus devaneios. E agora, um velho tema "perdido" que acabo de "encontrar"!
O CHAMATÓ DE ZÉ PACHECO
Na minha infância, na minha terra natal, havia um indefectível uso e costume de todas as pessoas: homens, mulheres, crianças, gente da cidade e do interior - ricos e pobres - todos usavam chamató. Um tamanco próprio do quotidiano, de uso generalizado, em todos os lugares e em todas as ocasiões e em todas as estações do ano. Coisa da cultura de uma região.
O chamató tinha um piso, quer dizer um "cepo" em madeira, de formato ligeiramente anatômico ou ortopédico, "coberto" em tiras de couro curtido. Qual um automóvel zero quilômetro, o chamató, quando novo, "cheirava" duplamente entre a madeira e o couro. Zé Pacheco, pelas linhas da vida, tornou-se de longe o mais famoso fazedor de chamató daquela região.
Na minha criancice vi Zé Pacheco fazendo chamató - esse tamanco, artesanal. Zé Pacheco era um homem nem calado nem falante, "brancarano", sozinho no seu ofício. Seus tamancos tinham um modelo exclusivo, de "cepo" mais grosso, mais alto. Com isso, os chamatós Zé Pacheco distinguiam-se dos demais, haja vista que, com mais espessura na madeira e couro curtido na cobertura, girava um entendimento generalizado de que aqueles tamancos duravam mais. E duravam!
Mercado garantido, produção garantida. Zé Pacheco não dava conta das encomendas; dos pedidos. Por vezes, porém, quando dos altos e baixos do seu comércio, alguns pares tornavam-se disponíveis, Zé Pacheco pendurava-os em uma enfieira, a um canto de sua oficina. Mas aquilo era "uma raridade", como no dizer do meu pai.
E então os chamatós de Zé Pacheco andavam de pé em pé e por todos os lados e por todas as pessoas. E volta e meia desciam para a capital. Iam de barco, três quatro dias de viagem, pois que naquele tempo não havia outra saída para a capital, afora os barcos, senão de avião, para os endinheirados. Depois, quando as lanchas chegaram naquele meu Velho São Bento, os chamatós de Zé Pacheco ainda reinavam, para só mais tarde declinar com a idade do artesão e os modismos dos novos tempos.
Mercê de dizer ademais que outros modelos de chamató por ali também existiam, mas não tinham a feitura nem a preferência dos tamancos de Zé Pacheco. Eram chamatós também de madeira, também em paparaúba, porém com o "cepo" mais baixo, mais estreito e com a cobertura fechada em peça inteiriça, material sintético. E perdiam de dez a zero para os calçados de Zé Pacheco, estes com tiras de couro grosso e curtido, modelados pelo artesão do chamató.
E então Zé Pacheco, na oficina à sala-de-frente de sua casa, na Rua Grande, no Bairro da Matriz, primeiro cortava em pranchas a madeira - paparaúba - uma espécie de cedro branco e leve. Depois da plaina e ao formão e com um pequeno porrete, ia dando forma ao calçado; ao "cepo" do chamató. E deixava-os em dezenas amontoados para, numa espécie de terceira etapa, chanfrando, dar o acabamento último àquela obra que ao final, dela todos se serviam. Mas isso era no tempo de uma província em ruas de areia, calçadas altas e intermináveis filas no açougue.
O tempo passou, como assim passamos todos nós. Um dia quando voltei à minha terra-natal, vi que Zé Pacheco não existia mais; também que os seus chamatós que viajavam de barco, de lancha e de avião para o "estrangeiro" também não mais existiam; como de resto também não existiam mais aqueles outros chamatós que perdiam de lambuja para os tamancos de Zé Pacheco.
E nessa dimensão de quantos se foram, também vi que os barcos que singravam o Rio Aurá, rumo à Baía de São Marcos para ancorar na capital, três quatro dias depois, com o estômago de seus passageiros em "pandarecos", também desapareceram. Também vi que as lanchas que os sucederam, igualmente zarparam para não mais voltar. E os aviões dos passageiros "endinheirados" que por ali tantas vezes deram atestado de riqueza e poder aos seus usuários - tanto quanto os chamatós de Zé Pacheco, agora, com um chão de asfalto, deles também nem se fala mais.
* Viegas é baixadeiro (da Baixada do Maranhão) e "escreveu" esse tema que o reprisa aqui, na pura mente, na noite insone, entre um punho de rede e outro.
Edição Nº 14933
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