Concluí o "terceiro livro" na Escola do Tio Mundico (ESCOLA SERTÃOZINHO). Tinha sete anos de idade e não conhecia um sapato, nem um chinelo, nem uma toalha de banho, nem creme dental. E copo de vidro era coisa de ocasião. A esse tempo ninguém tinha ali um rádio sequer. E uma geladeira a querosene só chegou anos depois, a algumas léguas dali. Na Escola do Tio Mundico, reinava a palmatória, o joelho no castigo e o olhar incisivo e dominador do Mestre. A Escola ensinava basicamente a ler, a escrever, ensinava tabuada, noções de História do Brasil, pequenas contas. Não tinha um programa escolar nem regras oficiais, nem provas mensais ou finais; também não recebia qualquer "ajuda" do poder público e de mais ninguém. E, ao que me lembro, todos de puro pé no chão (descalços) mesmo! Em quilômetros de idas e vindas, inverno e verão!
A esse tempo - hoje eu penso - acho que eu tinha uma memória privilegiada. Tinha uma facilidade para decorar tabuada, fazia pequenas "contas" e aprendi a ler e escrever sem maiores dificuldades e sem ajuda da palmatória. E, em algumas ocasiões, o meu pai, com as mãos, cercava individualmente aquelas letras graúdas da centenária CARTA DE ABC e punha-se a me sabatinar.
Pouco mais do meio do ano, "me lembro como se fosse agora", eis que certa manhã, domingo de sol, uma caravana de uns quatro homens, todos bem vestidos, em montarias arreadas, "gente da vila", de passagem, "encosta" à nossa casa. Entre eles: BENTINHO, OSMARINO, BERABA e outro. Eram comerciantes que passavam por ali a despeito de alinhavar algum negócio em compra de alguma colheita: milho, arroz, farinha. O terreiro da nossa casa era um de bom arruado e logo que os cavaleiros despontaram no caminho, o meu pai, rente ao batente da porta frontal e a distância, iniciou em cumprimentos. Aí aqueles "aristocratas da vila", que estavam mesmo era flanando, passeando, encostaram e apearam. E meu pai ali, na proa, bom de prosa e conversa esticada.
Naquele domingo - lembro-me bem - o nosso almoço, em casa, já estava garantido: carne com arroz. Mas com as visitas ali e a conversa esticada, eu logo previa... o nosso almoço... já era. E para completar, eis que o meu pai, apresenta-me àqueles senhores, abordando sobre a minha noção de leitura e tabuada. Aí, esqueceram-se dos negócios  e do passeio e puseram-se a me sabatinar. Quatro vezes oito? Trinta dividido por seis? Sete vezes sete? E eu, cria da Escola do Tio Mundico, ia detonando uma atrás da outra. Ficaram empolgados! E me rodearam. Fustigaram o quanto quiseram. Mandaram-me ler, mandaram escrever, "fazer contas" no lápis. E eu lá, na boa! Um deles, porém, puxou para o lado da História, justo em alguns pontos que tínhamos na Escola, e eu, na roda dos magnatas aos sete anos, "tirando de letra". E depois comeram o nosso modesto e ansiado almoço daquele dia. Ficamos com fome mesmo! Mas o meu pai, em recompensa, guardava nos olhos o brilho do contentamento, da satisfação - como, aliás, é próprio dos cavalheiros e bem intencionados anfitriões.
Era pouco mais de duas da tarde quando aqueles cavalheiros-cavaleiros, retomaram a sua montaria, de volta para casa. Antes, porém, um deles abriu o verbo e, dirigindo-se ao meu pai, sagrou uma inscrição: "aproveita esse menino, bota ele para aprender". Reacende-se a prosa! E meu pai, em tom suplicante, no veio da oportunidade, declarou que não tinha parente na "vila" e, portanto, eu também não tinha onde morar. Aí, conversa-vem e assim dias depois montado à garupa do cavalo de meu pai, numa madrugada fria com minha mãe em casa em choro abafado pelos cantos, acabei por ir morar na casa do Sr. OSMARINO, um dos cavaleiros que comeu a nossa boia.
Na "vila" fiquei boquiaberto com aquelas casas "uma pertinho da outra", fiquei assustado com o poste-de-energia e embasbacado com  a luz elétrica que acendia às sete da noite e fascinado com uma ou outra bicicleta que passava. À tarde, lá pelas duas horas, o meu pai, comigo em fila indiana, levou-me em apresentação à Diretora da Escola (GRUPO ECOLAR MOTA JÚNIOR) para matricular-me e logo esclarecendo que eu havia concluído, lá no mato, o TERCEIRO LIVRO. Mal a professora começou a me sabatinar e meu pai, incontido de expectativas ali ao lado e de coração batendo forte, entregou a senha e incitou: "puxe pelo menino, professora"! E aí foi o que aconteceu: cinco vezes sete? Trinta e cinco menos oito? Quarenta e dois dividido por seis? As respostas vinham seguidas. E tome sabatina!
Quando eu pensava que estava acabando o questionário, aí vem um teste escrito: contas e mais contas; cópia, ditado. E quando o dia quase já virava noite, a diretora, em sua sala-de-estar, deu por encerrada a maratona de perguntas. Gostou! Mas, descendente de carcamanos, de emoções contidas, declarou-me aceito em seu colégio. Antes, porém, ponderou junto ao meu pai que na minha Escola de origem não tinha programa oficial, não tinha grade curricular e sugeriu que eu ingressasse no SEGUNDO ANO (primário), o que o meu pai prontamente aceitou: "sim senhora, do jeito que a senhora disser, assim é que está certo". Pronto, eu estava matriculado no segundo ano primário!
Cursando o segundo ano primário, certo dia, um fato inédito! Duas professoras faltaram e a diretora, para não dispensar as duas turmas, dispensou o meu segundo ano e foi fazer uma revisão com o 4º ano. Foi quando me fisgou para estar na sala do 4º ano. As perguntas giravam e eu ali aceso, querendo responder. A certa altura uma pergunta da qual ninguém respondeu e eu sacudi o dedo (um costume da época). E quando um garoto do 2º ano, do interior, "emendou" uma turma inteira do 4º ano, foi uma bomba que explodiu e contaminou a todos ali!
Acabei indo morar na casa na diretora e lá eu fiquei até concluir o CURSO PRIMÁRIO. E abri caminho para quase todos os meus nove irmãos que também passaram por lá. Foi lá que tive um curso completo da "lei", da "ordem", da "disciplina", da "obediência", do "trabalho", do "respeito". Foi lá o ponto básico da minha formação e caráter. Foi lá em que eu aprendi que a única igualdade entre dez centavos e dez milhões é que ambos têm dono e apodrecem intocáveis no mesmo lugar, quais as frutas dos quintais alheios. Foi lá que aprendi a "honrar", "amar" e "defender a Pátria". Foi lá em que aprendi a agradecer! Escrevo este tema não para a minha promoção pessoal, mas para atender ao diletantismo de uma alma saudosista e para reconstruir no tempo e no espaço os paralelos e perpendiculares dos CAMINHOS POR ONDE ANDEI.

    * Viegas questiona o social