QUANDO TAMBOR PEQUENO FALA...

Nas capembas daqueles capoeirões onde o vento fazia a curva, de uma rara escola da palmatória, em que não havia luz elétrica e predominava o analfabetismo, o forte mesmo era o peixe seco ainda que vindo de distante, água do pote, a foice o machado, o facão e a roça. E haja labuta em sol a sol. Naquele chão predominavam os ditérios dos mais velhos – espécie de cultura daquela gente. Assim como desapareceram os mais velhos, também desapareceram aqueles ditérios que compunham a “cultura” daquela gente. 

Naquele tempo antigo de gente antiga, as crianças respeitavam e tomavam a bênção aos mais velhos; tempo em que os filhos não desmentiam nem se aproximavam, nem se metiam nas conversas dos pais ou avós. O “olhar atravessado” de pai ou mãe indicava que a taca estaria  garantida depois que a visita saísse. É desse tempo um ditério que dizia: “QUANDO TAMBOR PEQUENO FALA É PORQUE TAMBOR GRANDE JÁ FALOU”.  O ditério tinha um tom de censura, de reprimenda. É que se a criança estaria falando alguma coisa – indevida  ou inconveniente - é porque  o seu pai ou sua mãe já falaram sobre aquilo. E daí: “Quando tambor pequeno fala é porque tambor grande já falou”.

Lembrando esse ditério, voltei no tempo para lembrar justo esse TAMBOR. O tambor é uma percussão rústica, primária, em tora ôca (ocada) de madeira, coberta com couro cru, de boi. São esses tambores que compõem a instrumentação em percussão e cantoria que fazem a FESTA DE TAMBOR, também chamada de BRINCADEIRA DE TAMBOR. E, TAMBOR DE CRIOULA, nos centros alfaltados. O conjunto é  também denominado de PARELHA.  A parelha é composta de TRES TAMBORES:  o tambor pequeno ou TINIDOR o tambor médio OU CRIVADOR e o Tambor  Grande ou PINICADOR sendo este, assim como o seu tocador os líderes da brincadeira, da festança. 

Os tambores tem, entre si, uma gradação em tamanho e volumes diferentes e proporcionais - tipo “escadinha”, digamos. O tambor pequeno exerce uma percussão monótona, exclusiva. O tambor médio com outro diapasão, tem também o seu batido específico, mesmo ritmo ao passo que o TAMBOR GRANDE, o líder do conjunto exerce uma tocata que engloba os dois outros - com maior volume, maior expressão, maior desempenho  e maior evolução. É a sintonia ao conjunto dos três, cada um na sua pancada (ou batida) que forma o conjunto sonoro que consiste na BRINCADEIRA DE TAMBOR (como se diz no interior) ou  TAMBOR DE CRIOULA (como se fala nos centros do asfalto).

Diria que a FESTA TAMBOR (ou Tambor de Crioula) chegou ao Brasil Colônia, vinda nos navios negreiros, em meio à escravaria na Senzala. E remeto-me a imaginar que o escravo, além do trabalho forçado, das torturas e maus tratos  e fome  e doenças e angústia a que era submetido, a vida desgraçada em que era mergulhado, ainda tinha fôlego e disposição para animar-se com as BRINCADEIRAS DE TAMBOR, nas fétidas e infelizes Senzalas, de todas as misturas e promiscuidades – ela que ouviu gemidos, viu a navalha na carne, o sangue escorrendo no corpo e na alma; viu as dores e ouviu os gritos daquela gente. Para recomeçar tudo no dia seguinte

A brincadeira de tambor, qual se diria depois: “É festa de preto”. E era! Hoje não, quer dizer, nem tanto, porque mulatos, cafuzos, mamelucos  brancaranos e outras peles deles participam.  Hoje a BRINCADEIRA DE TAMBOR ou TAMBOR DE CRIOULA  é “cultura”, embora escanteada , desprezada,  que  não consta ou supostamente deveria constar do calendário e do apoio  do ente público, em frente às mais diversas manifestações populares, como por exemplo o Bumba-boi  a Quadrilha Junina e outras que tais.

A BRINCADEIRA DE TAMBOR lá onde o vento faz a curva, rarefeita como sempre e até hoje anunciava-se de boca em boca. E na noite e local anunciados, estavam  tudo lá. Tambores e respectivos tocadores  ladeados. Tambor pequeno e tambor médio  com a cabeça sobre um pequeno caibro ao chão e o tambor grande – grande e pesado - em pé, atado à cintura do seu tocador. E haja fôlego e suor, haja toadas e cantoria e... haja pinga porque ninguém é de ferro. Em volta o grande povão – todos “farinha do mesmo saco”.

Ao adiantado da brincadeira, em pleno vapor da percussão,  no espaço livre à frente dos “tambozeiros”,  surgem mulheres voluntárias uma a uma ou duas a duas que se põe no bailado solteiro ao ritmo e estilo do TAMBOR DE CRIOULA. Mulheres que se revezam. A percussão, as toadas e cantoria,  eis que a dança, o gingado, e a roupagem das mulheres retratam plenamente a cultura “afro”  vinda dos navios negreiros e da senzala que a tudo ali se espelham. Em seguida,  compondo a cena, surge igualmente um ou outro voluntário e, também na dança solteira, fazem gestos insinuantes frente a frente  em leve toque (barriga com barriga), cujo gesto chama-se PUNGADA  ou UMBIGADA que desperta empolgação e rumores da platéia, todos em pé, em  volta  e gostando do que vêem.

Lá pela meia noite a brincadeira para. Diante de uma pequena fogueira os tambozeiros afinam seus instrumentos em couro cru. Serve-se em seguida uma “bóia” aos tambozeiros que voltam com força total para executar a brincadeira até o dia amanhecer. Na noitada quando concorre pouca gente, pouca pinga e até mesmo pouco querosene para os poucos lampiões ao terreiro (como outrora sem energia), então a brincadeira termina antes do amanhecer. É daí que vem outro ditério: “... Eu conheço cara de tambor que amanhece”.

Destaque especial na festança é o TAMBOR GRANDE com sua evolução no curso da brincadeira. Ouso dizer que esse é o CANDOGUEIRO, qual um arauto do alegramento em meio à escravaria frustrada e infeliz, de que fala Clara Nunes na música CANDONGUEIRO: Eu vou-me embora pra Minas Gerais agora / Eu vou pela estrada afora tocando meu candongueiro  /  Eu sou de Angola, bisneto de quilombola / Não tive e não tenho escola/ Mas tenho meu candongueiro //////  No cativeiro, quando estava capiongo /meu avô cantava jongo pra poder se segurar  / A escravaria, quando ouvia o candongueiro, vinha logo pro terreiro para saracotear...

De sua vez, o notável e pranteado Nonato e Seu Conjunto, nos anos/60, na capital, através de Oberdan, seu componente, deu vez e voz ao TAMBOR DE CRIOULA com a canção do mesmo nome, outras vezes regravada: Quem ainda não viu / Tambor de crioula do maranhão? / Afinado a fogo tocado a murro / Dançado a coice e chão? /... .../// Aê ê tambor da ilha rufou /  Aê ê a cachaça já baixou / Aê ê tinidô, repipocou / Aê ê a pungada derribou

E, “repinicando” no ditério, ouçamos a lição dos mais velhos: “Quando tambor pequeno fala é porque tambor grande já falou”.