OS FILHOS DA PRECISÃO, “AO DEUS DARÁ”
Naquele chão de tanta pobreza havia um ditério que dizia: “o que a gente tem de passar não se bota na porta dos outros”. Hoje esse ditério não existe mais. As novas gerações não o conhecem. Era ali uma terra dos Filhos da Precisão, eles mesmos que viviam ao DEUS DARÁ. E quando se falava em “... Deus dará”, até parece que a terra tremia porque não tinha nem mesmo a última cuia de farinha, nem mesmo um único caroço de arroz, tampouco a última “bandinha de peixe seco” mas tão somente a ÁGUA DO POTE, no que tantas vezes era ocasional por ali em meio aos filhos da precisão que viviam ao DEUS DARÁ! Muitos deles ainda que noutras paragens que pediram “um lugar de casa” e moravam em terras alheias.
Quando EME-DÊ-CÊ adquiriu aquelas terras então devolutas junto ao Governo do Estado do Maranhão, ali ficaram enlaçados e subjugados OS FILHOS DA PRECISÃO, eles que ali ocupavam por tantos anos e mais anos aqueles pequeninos espaço de chão, vindos dos seus avós, bisavós e outros ancestrais. Deles que nasceram e se criaram ali; eles que viram seus dentes caírem ou apodrecerem ali. Eles que enterraram seus mortos pouco ali mais adiante. Sabe um porco confinado ao chiqueiro? Um gado no brete? Um escravo acorrentado ao tronco? Eram eles os FILHOS DA PRECISÃO que ficaram ao DEUS DARÁ, ignorados pelo Estado na maldita venda daquela vastidão de terras para EME-DÊ-CÊ. Uma injustiça!
Maldito esse Estado! Miserável esse estado! Desgraçado esse Estado! Esconjurado esse Estado que vendeu aquelas terras por um mísero trinta dinheiros, ignorando a miséria dos FILHOS DA PRISÃO, que ficaram ao DEUS DARÁ, lacerando-lhes em “carne viva” no sangue e na alma. Eles que não tinham nada, nada, nada. Mas tinham lá seus casebres e choupanas, quase uma choça e uma rocinha todos os anos (talvez) e um cavalo de cangalha, quando tinham. Tinham também o seu bem maior: Tinham o dia e a noite e o caminho para andar.
Tinham a foice, o machado, o patacho (cutelo), tinham a rede de dormir, dois ou três pratos de estanho avariados, um ou dois caldeirões negros, um pote e uma cabaça de água. Era só isso os seus “teres”. Dois tamboretes, até. E assim viviam por que viam os outros viverem. E todos enfim que tinham na boca alguns poucos dentes quando tinham – todos encardidos pelo fumo bruto. Porque “cigarro manso”, seria algo longe do seu alcance. Era assim como sobreviviam aqueles FILHOS DA PRECISÃO: AO DEUS DARÁ!
Batalha insana, tantas vezes era no “dicumê”. Aquilo sim: Uma PROVA DA VIDA! Por vezes salvavam-se com a galinha do terreiro, quando tinham. “A a gente se salva é com a galinha do terreiro”, diziam. No mais, também quando tinha era uma banda de peixe seco com TIQUARA. Tiquara é um chibé, uma mistura de água com farinha. Só isso. Outras vezes dois ovos, também com farinha. E quando não tinha nada, nada, nem o frango do terreiro, nem uma “bandinha de peixe seco”, nem uma tiquara de farinha, os FILHOS DA PRECISÃO que viviam ao DEUS DARÁ, saciavam a fome, com uma farofa de pimenta que comiam dois, três e até quatro na mesma cuia. Eram os FILHOS DA PRECISÃO, AO DEUS DARÁ!
Muitos deles senão quase todos eles cruamente forjados pelo analfabetismo – outros nunca nem mesmo tiveram a oportunidade de carimbar com o “dedo grande” num papel qualquer. Porque não tinham “porquê”. Porque não precisava. Pra quê? Luz elétrica, um chinelo ou um sapato, sabonete, toalha, pasta de dente ou escova dental, os Filhos da Precisão não conheceram. E calçavam tão somente um chamató feito de pau e couro cru e até mesmo uma “precata cearença”, improvisada, feita de caçamba de babaçu. E assim viviam os Filhos da Precisão, ao deus dará. Viviam porque viam os outros viverem.
Naquela humilhante sesmaria de encurralados submetidos ao DEUS DARÁ, tinha a família dos FOLHÁ, liderados pelo descendentete quilombola MANÉ FOLHÁ, que viviam todos, “na mesma bola” em quatro choupanas”, no lugar “Baixa da Folha”. Foi o maior gueto de pauperismo que os meus olhos já viram. Velho Folhá tinha um choupana toda “rota”, de chão escavacado. Tudo o que tinha era um velho pote de beiços quebrados que repousava sobre uma forquilha de pau, na sala de sua casa. E lá mesmo um cocho (grotesca gamela), de boca para baixo que lhe servia de assento. Tinha um cavalo velho de orelha caída. E era só!
Outro gueto de pobreza era lá, mais adiante, no rebojo do caminho, no Bastião Folhá, irmão de Mané Folhá. Bastião era tão mísero quanto o irmão Mané, ambos legítimos descendentes quilombolas. EME-DÊ-CÊ, não o aceitava em suas terras, terras que o Estado, esse desgraçado Estado, lhes vendera. Bastião e seus filhos, todos, moraram num único casebre, espremidos, humilhados, amontoados, quais escravos empilhados ao navio negreiro. E quando EME-DÊ-CÊ, vendeu uma “labra” de terras da sua sesmaria para TÕEN-DE-ANJI, pactuou que este expulsasse Bastião de suas terras. E os que não morreram de inanição ou de “mal de peito”, escorraçaram-se dali. E qual a maldição de Tiradentes, que teve o seu chão em sal e o corpo esquartejado pelos caminhos de Vila Rica, assim foi a tapera de Bastião Folhá – não ficou nada sobre nada. Hoje nem vestígios. Bastião Folhá e sua raça, FILHOS DA PRECISÃO sobreviveram duramente ao DEUS DARA, sem jamais conhecerem a alforria!
Gueto brabo de pobreza, era ali no MANGÁ, em que os Filhos da Precisão foram enlaçados na maldita venda daquele latifúndio a EME-DE-CÊ. A longeva PROCESSA que teve o marido flechado e morto por índios e comido por urubus, quando da debandada, foi escrava. Sua filha e sucessora Carolina (mãe Carola para os seus), “ainda pegou uma pontinha da escravatura” como ela dizia ao sotaque nasal. E todos os outros: Auta, João de Auta, Paulo de Auta, todos desgraçados, míseros Filhos da Precisão que vieram ao Deus dará! Lá adiante na Baixa do Urubu, viveu Zé Seguro e sua tribo, também encurralado e na miséria.
Mais adiante no CUVÃO – um nome que ainda causa arrepios – viveu LODIJERA e sua gente, esta que tentou resistir mas EME-DÊ-CÊ, pegou nas armas. E a mãe de Ma-Dê-Esse, aquela jóia lindíssima, tentadora, insaciável e concorrida, rendeu-se vencida, afinal aquele maldito, e odiado Estado em suas negociatas espúrias vendeu aquelas terras, enlaçando aqueles míseros FILHOS DA PRECISÃO, relegando-os ao DEUS DARÁ. Mas que fique certo de que ninguém, absolutamente ninguém haverá de se regalar, viver ou dormir em paz sobre o sangue, a honra, o cadáver e a desgraça alheia. A vida e a morte lá mesmo provaram isso!!!
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