MEMÓRIAS DA CASA DO ESTUDANTE
(2ª. edição – revista e ampliada)

Era assim: A casa do estudante na Rua do Passeio, no Gavião, esquina de Vila Bessa,  lembrava uma grande “colônia”, uma “república” e até mesmo um zoológico, como se dizia naquele tempo de moradias coletivas. Gente de várias cidades do interior. Tinha até do Ceará e do Piauí. Tudo estudante do segundo grau – Ginásio e científico. Grande maior parte uns mais pobres do que outros. Alguns empregados. Alguns outros que recebiam  uma simbólica “mesada” dos pais e outros até mesmo dos avós. Era visível o estado de pobreza de muitos lá dentro. Mas quando saíam lá fora era basicamente tudo a mesma coisa – “um pelo outro”. Roupas poucas. Grande maior parte lavava e engomava as suas próprias roupas. Outros improvisavam o seu café. Tinha gente que acabava de engomar a calça, vestia-a ainda morna e a garota já estava esperando na parada. Iam para o cinema. Quem?  Imagina!

Apesar  dessa república, dessa moradia coletiva, ninguém mexia com nada de ninguém. Ninguém sentia falta de nada. As portas dos quartos eram abertas em tempo inteiro e ninguém vivia “pernando”, pelos quartos dos outros. Lá embaixo tinha a GERAL – que era um quarto grande com maior número de moradores. O destino dos novatos era sempre a GERAL. Uns poucos lá de cima zombavam – dizia que os moradores da GERAL eram “asilados”, jogados pras cobras. Nada não! Eram tão moradores quanto os demais. Eu mesmo morei na GERAL, amava a GERAL e quando subi “lá prá cima”, meu coração ficou dividido. Eu não tinha certeza se queria deixar a GERAL.

Lá embaixo, por trás da casa, existia uma grande CISTERNA, subterrânea, com capacidade para acho que uns trinta mil litros de água. Lá eram uns oitenta machos e nunca faltou água. E até quando faltava, a vizinhança, por ali se ajeitava. E todas as manhãs, a macharada em pelo, tomava banho ao lado da cisterna, outros lavavam roupas. Tais pensando o quê? Que tinha sacanagem? Negativo!  Todos respeitavam todos, até porque ali, de regra, era tudo farinha do mesmo saco. A cisterna desenvolveu um lodo em que uns e outros deslizavam. Certo dia levei uma queda histórica. Fiz um texto. “Bum bum, Praticumbum, Brugurundum”. 

Durante a semana, e durante o dia, a casa ficava pela  terça parte, quinta parte quase deserta. Toda aberta. Não havia problema algum. Só alguns poucos cursavam durante o dia. E quando dava dez da noite, a turma ia chegando do colégio noturno, uns em seguida aos outros quase em fila. Eu achava interessante! E não havia costume de bebida alcoólica nem de fumo. Salvo exceções. Todas as noites a casa era iluminada. Nos finais de semana,  a casa iluminada era outra! Uns iam para o cinema, outros para os clubes populares, outros ficavam pelo terraço, outros pegavam  o bonde. E como ninguém era (nem é) de ferro, um ou outro dupla ia para a ZONA.

As refeições, quando tinham refeições, costumavam sair na hora certa, mas às vezes atrasava. O Herberth  “conterrâneo”, era bancário. calça apertada  e metido a bonitão. Pegava um prato e uma colher e começava a batucar. No início a turma estranhou porque na casa não havia aquela “zueira” mas depois acompanhou. Aos domingos não havia jantar. Então já estava decretado: “Hoje a janta é no seu Baú,”, este dono de um barzinho sofrido que ficava à margem do Gavião, o cemitério antigo da cidade. Um refresco com pão! Pronto uma janta e tanta! E lá iam dois a dois, três a três e lá vinham dois a dois, três a três e todo o mundo  “jantado” e satisfeito. Ora se tava! Chegava em casa, cada qual pegava a cama no seu quarto. SEU BAÚ, em suma, é tema para um livro inteiro. Suarento, cara de poucos amigos e sem essa de amiguinho do peito. Era refresco prá lá, dinheiro pra cá. E fim, de papo. Tivesse naquele tempo um serviço de vigilância sanitária, o refresco de macarujá, azedo e dormido  iria pelo ralo. Mas a turma atirava de letra.

Era o meu tempo de GERAL. O Carvalho contava charadas, piadas e lia um livro de horóscopo de uns dez anos atrás. “Diz aí bicho, o teu signo”. E dava certinho com a vida de todo o mundo! E haja sorrisos! Era o nosso lazer em grupo! O Sopão era metido a folgado mas não estava com nada. O Fontenele queria ser comunista, tinha Caetano Veloso como seu ídolo.  O Juarez esse era um “asilado legítimo” vendia até o cadarço do sapato e vivia envolvido com suas venéreas. Tornou-se “membro” da Justiça. Tinha o ZeAlves, balconista de joalheria. Ninguém sentava à cama de ninguém mas na do ZeAlves, tenha dó! O Barbeirinho tinha uma lambreta, fazia bicos de barbeiro, vendia bugigangas e era metido a “novo rico”. O Argemiro era um coitado, pobre-jó.  Depois que arrumou um emprego mal falava com os pobres. Tinha um lugar privilegiado na GERAL. Fincou o pé e não saiu de lá.

Pelé chegava da Zona altas horas, engraxava os sapatos e punha-os dentro da mala, com suas roupas poucas, surradas e zeladas. Tornou-se Oficial-PM. O escravinho tinha fama de bem dotado e contava estórias de suas “aventuras e travessuras” que dariam um livro que seria esgotado já no lançamento! O JAGUAR era machão. Na brincadeira, dançava homem com homem. Ele sempre fazia o papel feminino. Uma fera nesse teatro! Os irmãos Tico e Teco eram tão unidos que dividiam até o último caroço de farinha e vestiam-se sempre iguais. O Cleviegas ajoelhava-se ao lado da cama para rezar. Queria falar difícil e vivia discursando. Ele lavava e engomava suas roupas. Vestia a calça ainda quente e saía com a namorada que já lhe esperava na parada de ônibus. E ia para o cinema. 

O Lacerda era como gato: “jogava a pedra e escondia a mão”. Por causa de moça quase entra em boca. O ADONIAS, na curiosidade, resolveu investigar a profundidade da cisterna de água. Não fosse o Vítor que no último segundo amarrou um cordão em sua perna e o Adonias já era. Virou executivo de uma multinacional. O  “BACANO”, tudo pra ele era “bacano”. Pobre coitado. Virou executivo de empresa nacional. O PêCê era filho de lavadeira, no interior. Exemplo de retidão humildade e caráter. Era ecônomo e diretor da casa. Formou-se em economia. Tornou-se diretor em empresa pública. E sempre esteve na cúpula  por onde passou, desde os tempos colegiais. Exemplo de retidão e bênção de DEUS.

O Aluísio era neto de fazendeiro e latifundiário no interior. Era boa vida e também diretor. Queria ser químico industrial, especializado em petróleo. Não sei por aonde anda. Tinha dois  irmãos entre si. Letra-A vivia nas estrelas e Letra-B,  comia na tábua.  O Ribeiro era metido a diretor. Era chamado de “Ribeiro GROSSO”. Não era querido nem amado por ninguém. O Miguel soprava e abanava com as mãos o prato quente. Havia uma turma de veteranos, todos de um quarto que se chamava POTE. Era uma espécie de “estado maior”, de faz de conta. O Vítor que se tornou oficial PM era irmão mais velho do Adão. O Acúcio era metido a “especial”. Não dava bola para o povão, porém recebia as mesuras do seu parente SOPÃO.

Em meio a tanta gente seria de imaginar que aquilo era um ambiente promíscuo, desorganizado, infectado de coisas erradas. Isso, nunca!!! JAMAIS!!!  A honestidade, a lisura e o respeito, campeavam em tempo inteiro. Todos respeitavam todos naquele berço de democracia e de todas as liberdades. Legal mesmo era quando o Jaguar  fazia o papel feminino, na dança; legal também era ouvir as aventuras e travessura do Escravinho,  Legal também era quando na casa ecoava uma frase: “HOJE A JANTA É NO SEU BAÚ”