A CAMINHO DA VILA – Parte-I, 6ª edição
(rastros de memória, da vida e da realidade)

Transcorriam os anos cinqüenta - eu tinha sete, oito, nove anos de idade. A gente morava numa sofrida recosta de mato a dentro e fim de picada - distante de tudo e de todos denominada “Centrinho”. Só ia lá quem procurava um cavalo, um porco fugido, um animal perdido, para um dia de serviço na roça de meu pai ou... tinha algum assunto a tratar.  Por ali e mais adiante e tudo enfim feitos de pequenos lugarejos todos sobreviventes de uma pequena lavoura  artesanal, feita no toco,  no braço , no machado, no “patacho”, no facão. Foi, a partir desse Centrinho que escrevi OS MORADORES DE DENTRO DO MATO, onde meus pais fizeram morada.

Vez por outra, principalmente em tempos pós-colheita ou mesmo que não, o caboclo precisava ir até à VILA, vender seus quase-nada; a produção de um pedaço de sua roça por uns poucos tostões. Era o tempo do mil réis; do conto de réis – de um dinheiro então valorizado mas que restou amarrado em ponta de lenço ou... enterrado ao chão. E então o sertanejo se preparava, “se arrumava”; arrumava a carga, arrumava a roupa; arrumava a montaria – ia fazer negócio – ia vender; ia comprar – IA PRÁ VILA. 

Levanta-se às quatro, cinco da manhã; e sob uma luz fraca e fumacenta da lamparina, encilhava o cavalo punha-lhe a cangalha e botava-lhe a carga: dois paneiros - um de cada lado. Sessenta quilos. Seja de milho, seja de arroz ou  farinha - dois paneiros - um de cada lado! Quatro, cinco da manhã, o galo já cantava esparso no galho da cueira lá em cima e os cachorros deitados à beira do fogão de lenha, apagado. O sertanejo fazia um “quebra jejum”, comia um ou dois ovos com farinha, bebia uma caneca d’água, punha o chapéu na cabeça e do batente de sua porta, passava o pé no estribo de corda, montava ao meio da cangalha e lá se vai. A CAMINHO DA VILA.  Eu era um menino e vivia a saga e a maratona. 

E levava ou na cabeça ou numa pequena “nota” a relação do que deveria comprar: dois metros de chita ou de paninho; uma agulha, um tubo de linha, uma garrafa de querosene, duas barras de sabão, um “casal” de xícaras, uma quarta de café, um quilo de açúcar-alvo. E, quando muito, um patacho, um machado ou uma pedra-de-amolar. E lá se vai o caboclo, A CAMINHO DA VILA. Às vezes só; ás vezes em companhias apanhadas na estrada; geralmente sem um tostão furado no bolso, contando com o dinheirinho da “carga” que ia vender.

Ainda na madrugada escura, por vezes éramos surpreendidos e afetados  com galhos secos, cipós ou espinhos caídos sobre o caminho, enquanto não chegávamos na “Estrada Real”, uma sofrível estradinha carroçável. Amanhecia o dia, e para quem tinha “saído no  escuro, até que fazia caminho, montado em cavalo andejo”.  Oito horas....nove horas... passa São João, passa Cipó, Tapera-de-Bambá - coro até arrupia, dizem que lá é(ra) visagento - passa Gurguéia. Paquetá fica no meio da viagem. Está longe para trás mas está tão longe ainda para chegar à VILA. Na Gurguéia de Doca de Placídio, tem manga no chão e engenho de cana, mas ali a gente nunca conseguiu uma única caneca de garapa “nem pra fazer aremédio”. Na volta a gente apeia e come mangas. E eu lá! 

Cavalo chotão (de andar emperrado e duro) entra na espora e na taca. Quem vai montado vai montado; quem vai de pé, vai tocando. A VILA está longe, parece que não chega nunca. Tempo de inverno, aí é que é “galo duro”, como se costumava dizer. Os caminhos estão “atolados”; nem os cristãos não podem andar, imaginem os animais carregados. É tudo atoleiro.  E agora pai, por onde eu boto? Pergunto eu que vou à frente, “Bota por onde tiver cutivado” responde o pai aos gritos, quase ralhando. O garoto olha para um lado, olha para o outro – está tudo igual, tudo do mesmo jeito, ainda no lusco-fusco do amanhecer. Caminho e atalho não têm diferença – cada um pior que o outro. E eu lá, morrendo de medo e da bronca! E só tempos depois vim a saber  o que é esse “cutivado”.

Mete pelo atalho! Grita o pai. O menino montado no burro, no meio da cangalha sobre os paneiros, cumpre a ordem. Mete pelo atalho. E lá adiante burrão-de-cangalha com mais de noventa quilos no lombo, servil e ofegante, mete os pés ao fundo da lama, não consegue dominar. Sacoleja, bate e rebate  e, no rebote lá se  vão todos para o chão: o burro, a carga e o moleque montado no meio da cangalha.  O pai se dana. Aí é um tempo para tirar carga, sair do atoleiro, botar carga, “se alimpar”. Se tiver outros companheiros na viagem, aí o sofrimento é dividido; se não tiver, o sujeito amarga até quando der.. E vamos que vamos ... todos A CAMINHO DA VILA. 

Nove e meia do dia. Uma chuva fina vai caindo lentamente. O “encerado” (uma pequena lona) está lá cobrindo a carga e mostra que o dono tem “condição”. Tanto tem que tem até um “encerado”. Encerado é coisa de gente de posses, de gente boa, porque não é todo pé-rapado que tem um encerado.  E toca para a VILA, mas a VILA é longe, nem a gente muda para dentro dela, nem ela muda para perto da gente.  Por isso o estirão da estrada é o mesmo de sempre.

E lá adiante, meu Deus do céu, a “Ladeira dos Sete Inferno”! Essa então “tem o nome na história”! Em tempos de inverno, essa não alisa o couro de seu ninguém. Não tem atalho, não tem nada e seja lá o que Deus quiser. Virgem Maria, cruz-credo, LADEIRA DOS SETE INFERNO! O nome já diz tudo, não precisa dizer mais nada. Não que ela tenha uma ladeira íngreme; ou uma descida forte, não!! É barro liguento mesmo! Não tem cavalo naquele meio-de-mundo que nunca caiu por ali - seja na ida carregado, seja na volta cansado, em tempos de inverno. Ladeira dos SETE INFERNO era um “padre-nosso” antes e uma ave-maria depois. E até promessa de joelhos ao chão para “Sinhô”  São José de Ribamar. E mesmo assim carga caía, gente se lambuzava no barro. E eu lá!

De montaria assim meio doída, membeca, maruannha e até um tanto com sede, estamos a CAMINHO DA VILA. Na maratona ninguém para pra beber. Lá mais adiante tem o Imbaratuba!!! Imbaratuba e “Sete Inferno”  quer dizer a mesma coisa no inverno: é pedaço ruim; é atoleiro cruel - é frio na barriga; é cavalo atolado; é carga que vai para o chão. É atraso na viagem. É sofrimento, siô!  Mas o viageiro, ali, primeiro faz um voto de fé, com o sinal da cruz para limpar  barra e atravessar o Imbaratuba. E diz em alto e bom som, entre súplica e coragem: ‘’Nas horas de Deus e da Virgem-Maria”. E seja lá o que Deus quiser. São Longuinho, São Benedito e Senhora da Conceição que nos proteja. E repete “Nas horas de Deus e da Virgem-Maria”!!!

E toca o cavalo procurando uma beira do atoleiro, sem ao menos um atalho. É cruel, é tudo ou nada. Aos trancos e barrancos o cavalo mete o pé; levanta o pé a duro esforço e sacrifício. E o sujeito montado lá em cima, aos sacolejos no meio da cangalha. E no vai-não-vai, no cai-não-cai, adrenalina lá em cima, até que enfim o Imbaratuba fica para trás! Senhora da Conceição ganhou uma vela que vai ser acesa daqui a nove meses, na sua festa, em dezembro. São Longuinho, seis palitos de fósforo que os receberá acesos, até finalmente apagar, um por um,  na chegada, na volta da viagem.

Já se passaram os pedaços mais difíceis do CAMINHO DA VILA. Daqui para diante, é uma pisada só, mas ainda tem um  esticado pedaço de chão pela frente. Ainda tem  Rua das Fôrra, Conceição, Grajaú e  Estrada. É bom até mesmo ir caminhando um pedaço a pé, para aliviar o peso do animal.  (continua na próxima edição).