ALMAs PENADAs
Hoje é domingo. Domingo à tarde. Domingo de céu azul, límpido, contrastando com a seqüência de dias outros idos em que a chuva tem caído torrencial e persistente na cidade. Manhãs, tardes e noites. É bem aí que o Riacho Capivara se enche; o Cacau se dana e o Bacuri corre solto lá em cima com suas águas barrentas, que vão deslizando ladeados pelas casas que jogam seus esgotos pra dentro deles. E o que durante o verão é uma poluição e um mau cheiro só – agora é uma enchente! Uma correnteza! Um alagamento!
E então as águas deixam seus leitos, rebentam o asfalto esburacado e inundam as ruas, as casas. A cidade fica intransitável em múltiplos trechos pontuais. Carros bóiam, pequenos comércios são invadidos, donas de casas carregam suas tralhas na cabeça, mudam-se. Inquilinos com suas casas tomadas de água pelo teto e pelo piso, espalham-se à procura de outras. O problema social se alastra e vai tomando de conta dos moradores e da periferia e da vizinhança dos riachos. A gritaria é generalizada. E a chuva caindo forte, intensa, persistente!
É notória a blasfêmia que se fazem contra os nossos riachos, eles tão filhos e tanto quanto MÃE NATUREZA, a serviço da vida e do conjunto da obra. Bairros inteiros que se levantaram sobre pântanos que foram aterrados, soterrados e insistem em se levantar, em regurgitar nestes tempos. É notório o seu grito silencioso e lá mesmo o silêncio gritante embaixo de áreas e bairros que foram levantados sobre o sepulcro da natureza viva, por conta da ganância de uns e da sandice de outros. Em nome do “progresso”, até. Vê-se então que a natureza foi enterrada viva, proposital. Soterrada, ela grita quando a terra fria e encharcada toca o seu manto violado, vulnerado e destruído, lá embaixo.
E aí o que se vê, é que muitas construções, barracos e arremedos feitos pela mão humana não suportam. E a natureza soterrada qual uma alma penada, vem pra cima, para responder e reclamar. E ainda que devastada, violentada, vilipendiada e destruída, qual uma alma penada ou um elo perdido, ela grita a sua dor, vem pra cima, aflora e até mesmo afasta e afugenta as pessoas. Mas isso é só de uma hora para a outra ou de um dia para o outro. Porque almas penadas não têm faca nem facão. Porque no dia seguinte, basta as águas baixarem ou as chuvas passarem como enfim passado o incômodo ou o susto, as pessoas voltam ao mesmo chão e teto, construindo-se um ciclo viciado e vicioso desse vai e vem. E a mãe natureza soterrada e violentada; enterrada viva, grita em silêncio; um silêncio gritante – como bem assim é a sina, o fado das ALMAS PENADAS.
O Bairro do Bacuri que o diga. Aquilo foi um pântano que veio da fazenda do decano, “Seu Alencar”. Levantaram-se prédios, Faculdades, construções, quartéis, órgão públicos, empreendimentos industriais e comerciais. Fizeram pontes de concreto, ruas de asfalto e o raio que o parta e a natureza lá embaixo e lá em cima, inconformada e infeliz – regurgitando, rangendo, gritando, Basta cavar três palmos, quatro palmos e a água aflora, escorre. Escorre na cara da cidade e de todos nós, mas parece que ninguém se toca. Daqui a pouco, no verão, tapam-se as feridas com gaze e esparadrapo. E no próximo inverno, recomeça a ciranda.
E o Parque do Buriti? O próprio nome já indica: BURITI!!! O buritizeiro é uma palmeira que requer água com óbvia fartura para sua sobrevivência e vivência. Corpulenta, ela cresce ostensiva e produz ricamente. Quem tem noção da espécie sabe que o jovem buritizeiro, onde não tem água na flora da terra, ele com suas raízes, protrai o veio subterrâneo até alcançar o lençol freático e faz em sua volta um alagadiço suficiente à sua mantença. Engenharia da natureza! E, quando não é isso, ele já procura o seu habitat - o alagadiço!
Esse “Parque do BURITI”, já é bem de se ver de onde ele vem: Vem de buritizeiros por lá. E o que se vê por lá? A natureza que foi enterrada viva, soterrada. E toda uma área, outrora de terras particulares, engenhosamente loteado e dividido e que na sua base se propunha em servir a uma “elite do social”. E a cada inverno haja grito e lamúrias de uma alma penada, soterrada, viva lá embaixo. Lá mesmo onde plantou-se uma cadeia pública.
Os buritizeiros que lá viveram, foram prematuramente ao chão e juntaram-se ao pó. E as águas que deram vida a esse pântano ponteado de buritizeiros, foram soterradas, encimentadas, sufocadas. Enforcadas. Qual a alma penada do bairro do Bacuri, as águas do Buriti regurgitam, esfriam o piso, escorrem até e mexem com as estruturas de ferro e cimento e múltiplas toneladas de entulho e de tudo enquanto. E ainda que assassinadas, provam que a NATUREZA é mais forte do que a sandice dos bípedes que as manipularam e manipulam. Porque não interessam os meios, mas tão somente os fins. E mais: dinheiro do ente publico, como enfim por todos os lados, financiaram as construções à flor da terra.
Semelhante situação registra-se no Bairro da CAEMA, beirada do Rio Tocantins, com a influência dos Riachos Santa Tereza, Bacuri, Cacau e Capivara. Diferente não é o Bairro da Vila Nova, ligado ao Santa Lúcia, Parque Alvorada I e II, Airton Sena e demais grande periferia adjacente. O mesmo ocorrendo com o Bairro Morada do Sol, ou parte dele, todos feitos sobre a natureza enforcada em juçarais e buritizais e capinzais que foram ao pó para dar lugar às casas “mais estas ou mais aquelas” que sobre eles se levantaram e os subjugaram.
E o Bairro São José que se junta ao Santa Inez e ao Bonsucesso? Tudo água soterrada lá embaixo. E o São José do Egito? Esse, coitado, basicamente desapareceu espremido entre o Bacuri e o Buriti, em cuja planície subterrânea, o lençol freático soterrado tenta gritar e grita como gritam outros tantos. E o Jardim São Luís? Na origem, propôs-se à nobreza, coitado! Construído na planada, em cima do espelho da aguada assassinada. Empolgado com o mito de orgulho à sua volta, ele parafraseou: “Espelho, espelho meu / existe outro JARDIM mais belo do que eu”? Tá lá! É outro que grita lá embaixo. É outra alma penada.
E o Bairro Leandra, você conhece? Você lembra? Em verdade, em verdade prestou um serviço social à construção primária da cidade. Era o bairro das olarias artesanais em que nele escavaram e destruíram o quanto quiseram e puderam, como numa terra sem lei, qual num famigerado “JÁ CABOU”, que de tão acabado nem existe mais. E haja uma natureza contorcendo-se e regurgitando lá embaixo qual uma alma penada que assusta e incomoda (só assusta e incomoda), os seus detratores, invasores e predadores.
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