VERGONHA NA CARA
É noite, alta noite. Tô na esfrega e na refrega da mente. Perdido em meus pensamentos, à procura de um tema que me ocupe a mente. E o sono se foi e o tema não vem. Foi assim que, de cara e forçando a mente, lembrei-me do meu velho avô, meu velho Doca Barros, hoje “imortalizado” no “memorial” que lhe edifiquei à beira beira do caminho onde foi sua tapera. Sabia ler, relia seus velhos e surrados livretos de cordel. Nunca vi escrever uma única linha. Ele que deixou lições que eu guardo na memória e sei de cor. Costumava sentenciar: “Vergonha é prá quem tem”. E eu seu neto e seguidor e guardião de suas lições me dou ao desplante de complementar: “Vergonha é só prá quem tem”.
Conheço um cara que quando quer desafiar um interlocutor ou seja lá quem for, costuma se expor: “Eu sou do tempo em que o homem tinha vergonha”. E provoca: “Você não lembra, você é jovem”. E insiste na provocação: “Você não lembra, esse tempo é um tempo antigo, quadrado e você é jovem”. Um ou outro vai pra cima, contesta. Mas a maioria baixa a cabeça, se entrega, ou porque não entendeu a mensagem ou... porque... a vergonha é coisa do passado...
Martinho da Vida, na canção Pra que dinheiro, ele diz: Dinheiro? Pra que dinheiro? Se ela não me dá bola / Em casa de batuqueiro / Só quem fala alto é viola. Pego a onda desse batuqueiro e pergunto: VERGONHA? PRA QUE VERGONHA? Se a vergonha e se perdeu em meio a tantos sem-vergonha? E quando digo “sem-vergonha”, não tenho a intenção de ser pejorativo nem ofensivo, com ninguém nem com nada, mas tão somente usar um ADJETIVO que QUALIFICA, um infinito universo, neste universo infinito.
De velhos tempos e eu moleque, ouvia dos mais velhos; “Fulano é sem-vergonho”. Eu inocente de tudo, ouvia aquilo e achava pesado. Muito pesado! Terrível! E consultava com as minhas unhas de extremidades sujas de terra: “Sem-vergonho”. Deve ser um sujeito ladrão, falsário, enganador, moleque, irresponsável, maconheiro. E ia me perdendo nesse imaginário infinito neste universo infinito. Eu tinha um pavor dessa palavra “SEM-VERGONHO”. Só que depois me disseram: Não é sem-vergonho, é SEM-VERGONHA.
As vias estreitas e escaramuças e laceres da vida, vieram para me mostrar que a VERGONHA é uma virtude a que todos devemos ou deveríamos ter a obrigação de cultivar, guardar, carregar. Sim, porque a vergonha é princípio, é caráter, é formação, é costume, é sangue, é o olho da cara; é a cara do cara. É o “cara-a-cara” que o meu avô tanto cobrava. Vejo entanto que neste mundo de estróinas, perversos e pervertidos e lesa-pátria e políticos aproveitadores e ladrões e falsários e enganadores e estupradores e homicidas e mal-pagadores e assaltantes e roedores e negociantes e industriais da falsidade, está cheio de “sem vergonho”, eles que perturbaram a minha inocência e meu imaginário de criança, revelam-se agora num infinito universo, neste universo infinito de tantos SEM-VERGONHA.
Sirvo-me agora de lembranças tantas em conversas tantas que eu tive com a minha pranteada mãe, quando nos convencíamos de que este mundo, qual um lado da medalha está cheio de tantas leviandades, de tantas perversidades, de tantas inverdades, e nesse mesmo passo também chegávamos ao outro lado da medalha: Apesar dessas tantas leviandades e perversidades ainda tem gente e muita gente de PALAVRA, DE HONESTIDADE, DE CARÁTER, DE VERGONHA NA CARA!
Ao final de conversas essas, quando lembrávamos o seu pai, o meu velho avô DOCA BARROS que dizia: “A vergonha é prá quem tem”, a minha mãe, PERDIA-SE EM SEUS PENSAMENTOS, quase inadvertida e em silêncio, olhava rumo ao infinito que era quando eu via uma lágrima caindo do seu rosto. E ela, retornava em si e arrematava: “Verdade, meu filho, se este mundo a cada dia se degenera por FALTA-DE-VERGONHA, também é certo que ainda tem muita gente que tem VERGONHA”.
Este texto não se direciona à quem quer seja. Nem à quem quer que fosse, Não tem direção. Sendo assim é uma indireta. Na sua hipotética malha estão os hipoteticamente bons e os hipoteticamente maus. Uns de um lado, outros do outro. Onde quer que você esteja, põe a carapuça em tua cabeça, antes que algum aventureiro lance mão dela. O que, aliás não é nada original pois que D. João VI, em 1.808, faz mais de dois séculos, já orientava, nesse tom, ao seu infante, D. Pedro I, que cumpriu regiamente.
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