PEDINHA DE  ZEZENDO (vida real)

Nos anos 1960, do Governo Militar, os órgão de Imprensa estavam sob vigília cerrada do regime. A imprensa escrita de esquerda (Jornais e outros), tantas vezes de última hora e até mesmo atrasados da hora, tinham que desfazer, desmontar suas edições.  Era um sofrimento. Um arraso! E então, tantas vezes, para cobrir a lacuna, jornais preenchiam o espaço proibido com RECEITAS DE BOLOS E DOCES e outras guloseimas. Eu era um estudante e ficava vendo sem entender as receitas de bolo e doces na primeira página, ocupando espaço. O texto abaixo é como uma RECEITA DE BOLO (ou de doce?), ocupando o espaço 
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Pedrolina era uma boa moça.  Honesta em tudo, trabalhadora, comprometida, dedicada, decente. Exemplar. Filha de Zezendo de Dedê e dona Mariinha. Zezendo era um alcoólatra nato. E, como se dizia bebia até o próprio juízo, a ponto de que o seu cavalo de cangalha (de serviço) trazia-o para casa, por vezes noite adentro. Por sua vez, a mãe d. Mariinha era um  poço de mansidão e tolerância e todas as virtudes.  Suportava a desenfreada cachaça do marido que por sua vez, entanto, era um “beira de casa”, como se dizia. Fruto desse casal, PEDROLINA, nome que herdou a uma tia que morreu pós-parto. Eis a nossa personagem!

Pedrolinha, na intimidade PEDINHA, já na sua juventude, debaixo das asas paternas era um exemplo de criatura, de filha e de tudo enfim. Executava as mais árduas tarefas domésticas do cotidiano, sem se queixar, sem sair da reta e sem deixar nada pra depois: lavava roupas, varia casa, carregava água, quebrava coco, rachava lenha, socava arroz, fazia o “di cumê” e as tarefas da roça. Era uma verdadeira serva sem  “mesada”, mas essa era a criação, o costume, a filiação daquele velho tempo roceiro, em que a energia elétrica por ali só chegou cinquenta anos ou mais anos depois.

PEDROLINA  não era festeira, nem namoradeira mas... como “ninguém é de fero”, eis que uma reza em café com bolo aqui, um vesperal  tempos depois por ali, e até mesmo numa festa de baile por acolá, PEDINHA acabou por encontrar um rapaz que dela se engraçou. Também não era pra menos: uma moça decente, de família,  esguia, “trabalhadeira”, de bons modos. Um partido e tanto! Um partidão! E eles que entre si se engraçaram reciprocamente, bem é de se ver que o rapaz era que estava na vantagem!  E então se casaram de papel passado, com direito a véu e grinalda, flor de laranjeira e tudo o mais. Bem ao sabor daquele velho tempo em que a virgindade e o céu eram os limites!!!

Pedrinha cujos pais, logo ao início desta construção tiveram pregados os seus retratos na parede, o nubente-varão, por sua vez era filho de João Vermelho, este que além de roceiro e rezador de vias-sacras ou ainda daquelas rezas ungidas em café com bolo, era o mais afamado raizeiro em todos os tempos por aquelas bandas, a ponto de imaginar-se que João Vermelho com suas “meizinhas” e chás e benzeduras até, fosse um afamado terecozeiro e pai de santo e babalorixá e outros encantos que tais. Nada disso! João Vermelho era um simples raizeiro que ministrava seus chás e benzeduras. Só isso.

E assim  casados JANJÃO CANELA FINA  e aquela fina flor do cumprimento do dever e da castidade, foram então morar bem pertinho da casa do pai da moça, em terras que a família herdou dos seus avós. E fizeram casa. E puseram roças.  Cada ano duas roças! Sim porque  a cada ano tem a roça principal mais uma roça temporona, menor, chamada “rocinha” ou “sangáu”. Específica para mandioca. Nesse período não tiveram filhos. Nesse entremeio veio aquela febre danada do garimpo. Anos 1980. Uma loucura! E então quem quisesse sonhar na vida, ter esperanças na vida – o caminho era o garimpo. Lembra dessa época, né? 

Pois bem, terceira roça. Queimada, cercada, coivara limpada, plantada, em pleno tempo de primeira capina e JANJÃO CANELA FINA, casado de menos de trens anos com PEDINHA, danou-se de ir pro garimpo. Tentar a vida no garimpo. Ganhar dinheiro no garimpo. Melhorar de vida no garimpo. E até mesmo, como era da meta geral: ficar rico no garimpo. PEDINHA, aquela joia de criatura humana, não contava com essa aventura do marido. Ela que foi criada debaixo das asas de pai e mãe, sem contestar absolutamente nada, não seria agora que iria contestar essa inesperada decisão do marido. Fazer o quê, né?

Era uma manhã fria, quando Janjão, pegou sua “boroca” - uma improvisada sacola com uma redezinha de lona, duas ou três mudas de roupa, chinelo nos pés, chapéu na cabeça e um dinheiro apertado no bolso. Lá adiante pegou a carroceria de caminhão, deixando em casa uma joia de jovem esposa, fiel, dedicada e responsável naquela casa esvaziada, uma criatura que ficou com o encargo de cuidar daquela roça. Ela mesma de olhar distante, pensativa, insegura. Nervosa e chorosa, até. E ele que prometeu logo dar notícias e, “conforme as coisas”, estar de volta dentro de um a dois meses.  Na incerteza, PEDRINHA acreditou. 

Aí passa um ano, dois  anos, cinco anos, seis anos, sete anos! E nada de Janjão Canela fina. Nem um bilhete, nem uma carta, nem um recado. Nada! PEDINHA resignada, no seu ponto de honra e à espera do marido. Seus pais começaram a se “inquietar”. Isso não tá certo. Isso não tá certo. Nesse drama, ficaram sabendo de notícia do marido. Ele mesmo que não dava sequer notícia para a sua jovem esposa. E PEDRINHA lá, cuidando da casa, varrendo a casa, carregando água pra casa, cuidando da roça. E esperando o marido. E o marido, nada!

Aí, os pais de PEDINHA, que já estavam inquietos, sete anos passados sem ao menos uma notícia, começaram a dar corda: “deixa de ser besta, procura refazer a tua vida, procura uma jeito pra tua vida – que esse homem não tá ligando nem pra ti, nem pra tua vida”. E PEDINHA lá, no seu ponto de honra, ao mesmo tempo em que alimentava uma esperança, via que o seu casamento estava perdido. E quando decidiu ir a uma reza daquelas em café com bolo ou expectar um vesperal, logo-logo encontrou um NOVO PAR, com quem está casada até hoje.  E Janjão Canela Fina, menos de três anos de casado e garimpo a fora, faz uns quarenta e tantos anos,  nunca mais voltou ao seu lugar. E PEDINHA, um emblema da dignidade e da honradez, até hoje, com o seu segundo marido, vivendo o seu inarredável ponto de honra.