ANCORETA

Leia-se “ancureta”. É um objeto de que tenho notícia porem não tenho qualquer intimidade. Trata-se de um  um utensílio feito em madeira, borracha ou plástico com a finalidade de  estocar líquido/s: água , cachaça, mel, vinho ou coisas assim. Nos caminhões e auto-cargas do passado, era costume ver-se uma “ancoreta” na parte inferior das carrocerias, adaptada aos solavancos dos veículos e de fácil acesso. Destinava-se ao armazenamento de água potável para o consumo humano. Hoje, ao que percebo quase não mais se vê  “ancoretas” sob carrocerias de caminhões, ainda que destinadas às antigas finalidades. Também desapareceram os caminhões “carga seca”, convencionais de outrora.

Tão somente agora e, a propósito deste texto, vou ao DICIONÁRIO PRIBERAM  na WEB  e este me traça a reposta: “Ancoreta – barril de forma achatada, geralmente para transportar vinho ou aguardente”. Não satisfeito com a resposta vou ao meu velho DICIONÁRIO CAPA PRETA, que me acompanha fiel e amarelecido  desde setembro de 1969 – faz cinquenta anos -  e lá está: “ancoreta:  pequeno barril chato para o transporte de vinho ou aguardente”.  

Qual na canção  “Feira de Caruaru”, de Luiz Gonzaga, quando ouvido o Mestre Vitalino a respeito de que outros bonecos e artes em barro não eram de sua lavra mas de outros artesãos, contudo intitulados  “... bonecos  de mestre Vitalino”, responde o decano: “TEM NADA NÃO..  tudo irimão”. Tem nada não, prosa à parte, voltemos à ancoreta. O chão onde deixei o meu umbigo e que eu amo de todo o coração, e que para lá tenho voltado constantemente ao longo de uns doze anos em contadas sessenta e cinco viagens e onde construo, por todos esses anos dentro do mato,  homenagens aos meus ancestrais (meus pais, avós, tios), é um  lugar pobre em água. Paupérrimo, no verão. Situação que alterna-se conforme os lugares.

Lá não existem rios ou fontes ou riachos perenes. A água do uso e consumo de lá vem dos cacimbões que ali se chama poço – que são cavados no braço; que costumavam ficar distante das casas à busca do melhor lugar para sua localização mas que por último, costumam ficar mais próximos das residências. Deles que tem  dez, doze, quinze metros de profundidade e, ainda assim não tem boa qualidade para a ingestão, obrigando as sofridas mulheres roceiras, outras aposentadas, desdentadas e mais que sexagenárias a caminhar distâncias e a carregar sobre a cabeça o “líquido da vida”. O que aliás, sempre o fizeram desde a mais tenra idade – tema que já me rendeu texto/s que desenham a vida real e o sofrimento daquela gente.

No verão, então, a situação é mais difícil e sofrida. Alguns poços  secam e as pessoas ficam obrigadas a buscar água em cacimbas distantes e outras que se localizam em “grotilhões”, com  íngremes e arriscados declives/aclives, além do iminente perigo tanto na descida com a vasilha vazia quanto na subida com a vasilha  cheia. Ao todo em doze, quinze, dezoito  litros d’água. Enfim, um lamentável sofrimento de que aquela gente se ressente durante os períodos de verão, com a escassez de água, bem como a pobreza de vasilhames para a condução e estoque. De tal sorte que, ali, um balde de vinte litros ou vasilhame semelhante desses que se compra no Mercadinho ou em qualquer lugar por cinco, sete ou dez reais, ali é um utensílio  de primeira necessidade e, se convertido num presente - aí sim: “um presente de valor!!!

Consciente desse sofrimento, sempre que vou à minha terra, entre outros, costumo levar vasilhames em plástico que os distribuo gratuitamente à vizinhança: baldes de tinta  ou de margarina (vazios), tambores de água mineral e outros similares. Vejo então a festa e o brilho nos olhos de quantas se fazem aquinhoadas com a vasilha. Nessa maratona, tenho também os meus depósitos: tambores de  vinte, cinquenta, cem e duzentos litros, embora que, por último tenho múltiplas caixas d’água. É como diz o humorista e dublê de cantor Falcão: “o dinheiro não é tudo mas é cem por cento”.

Em tal situação acabei emprestando um tambor de duzentos litros a um vizinho-distante quando da construção de sua casa. Terminada a obra ele cedeu-o à sua sogra que com o tambor ficou por algum tempo até que... dele voltei a precisar. Percebi então que a mulher ficou “apaixonada”, quase “doente” ao ver o tambor escapar de suas mãos. Via fugir de suas posses aquela preciosidade, aquela “ancureta”  como ela mesma dizia. Levei-lhe então em seguida outros baldes  menores mas a “paixão” daquela mulher não se desfez. Percebi o seu sentimento, a sua dor, tais as perguntas a que  fazia.

Faz algum tempo voltei à minha terra. Parei em frente à dita mulher, agora numa “padaria” de fundo de cozinha que tem lá naquele chão. Outra preciosidade! Um tema para depois!  Foi aí que a dita e cuja mulher, esfalfando-se, resfolegando-se veio correndo em minha direção. Fez um gesto de medida à altura do seu peito, algo como um metro e vinte centímetros de altura e queria uma “ancureta” daquele tamanho. Em troca me daria um ”capão”  que estava cevando em seu terreiro. Levei na brincadeira e disse que queria três frangos-capões. Ela achou muito.  

A “ancureta”, da qual ela tanto se agradou comporta algo como cento e oitenta ou cento e noventa litros d’água. E então, sem visar os seus frangos de terreiro quero já na próxima viagem, levar-lhe uma “ancureta” consistente em uma caixa d’água de 500 litros. Fico vendo então sobre o conceito, o sentimento de “felicidade” de que se investem as pessoas. Um dia, por aqui, um esperto “patrocinava uma participação na TV, pelo qual suas marionetes concorriam a singulares bijuterias, num malsinado “jogo da forca”. Ganho o prêmio ele perguntava: “estás feliz?” E as pessoas confirmavam a felicidade. E eu ficava só vendo: um sendo o tolo e  outro impondo  àquele outro ao papel público de tolo. E tinha mais: Ele que nunca teve um carro, prometia um carro ao vencedor. E haja felicidade!!!

Agora, eu já imagino que essa mulher não vai mais dormir e vai festejar esse bem (essa “ancureta” de 500 litros até se acostumar com essa novidade e conquista. Afinal, uma “ancureta” ali, é um bem mais que especial, ao alcance de poucas pessoas, capaz de deixar qualquer uma sem dormir. E haja “felicidade”! E daí que o conceito de felicidade é relativo, tal como naquele outro que no “jogo da forca”, ganhava um bijuteriazinha de pouco valor ao confirmar a pergunta do esperto: “Estás feliz?”.  E, se para uns a felicidade é ganhar uma bolada na loteria ou ganhar qualquer coisa naquele jogo de azar de fim de semana por aqui; para outros é tornar-se HERDEIRO. Para outros, a felicidade é ganhar uma bijuteriazinha de pouco valor. Ao passo que para outra sua felicidade se resume numa simples “ancureta”.