LENDAS DO MEDO
Zé de Fosta, também conhecido por Zé da Gorda, era um sujeito taciturno, fechado, caladão. Não tinha amigos e morava só. Todos o evitavam. Na cumeeira de sua casa morava uma cobra jibóia, cuja hospedagem afastava qualquer intruso. Conheci-o morando nas terras do meu avô, num casebre dentro do mato, servido por uma precária vereda, dentro de um matagal. Meu avô dispensava-lhe atenção e exigia que o respeitassem. Zé de Fosta era um sujeito “asqueroso”, ninguém dele se aproximava também não era de se aproximar de ninguém. Só o nome já despertava vapor, “chega côro arrupiava”! Diziam por ali que ele teria vindo das bandas da “beira do campo”, das bandas do Deserto ou do Puleiro. Era só isso. Zé de Fosta virava uma fera se lhe chamassem pelo apelido de ZÉ BICUDO. Insultava a mãe do detrator até o último fio de cabelo e de resto o que se via era “trovejar e relampiar”.
Zé Bicudo em mais de seis léguas de rodas, tinha fama, “dito por uma boca só” que virava porco, virava “labisonho”. Aí já viu, onde Zé Bicudo passava, a molecada fazia silêncio, outros saiam “de carreira” e tudo e todos faziam de tudo para evitá-lo. Eu era moleque, 13, 14, 16 anos, “me pelava de medo” de Zé Bicudo. E ouvi dos mais velhos, inúmeras vezes, relatos das façanhas e diabruras daquele sujeito. Diziam que ele “virava porco”, justo naquela encruza soturna, debaixo de um pequeno mangal, que hoje fica numa pequena propriedade dos herdeiros do meu pai, bem próximo de onde hoje eu construo o que chamo de “MEMORIAL DE ANTONIO DEZ INEZ”, para edificar a memória dos meus pais. E quando me refiro à encruza debaixo do mangal, mangal costumo dizer: “Ali onde Zé Bicudo virava porco”.
Joana da Mangueira, era uma mulher “despachada”, solteirona, falante, um prato cheio para as fornicações daquele lugar sem opções. Durante o dia nas roças alheia ganhava diárias e, à noite... ela se virava naquela sua modesta e solitária casa de palha e chão batido, justo ali à beira daquele mangal. E daí o apelido de “Joana da Mangueira” que ela abraçava com estima. Era na encruzilhada, debaixo do Mangal que Zé Bicudo aprontava as suas;
Contava Joana certa vez, trabalhando no “corte de arroz”, numa roça do meu pai – e eu ali pelo meio, também no serviço – que certa feita, fim de tarde, Zé Bicudo passou por ali, meio que devagar, olho comprido, querendo namoro, quando Joana, sentido-se assediada e na recusa, o escorraçou. “Olhaí Zé Bicudo, tu não vai virar porco por aí”. Pobre Joana! Aquele mangal sombrio sobre a encruzilhada era terreiro varrido da andanças e diabruras de Zé Bicudo. Aí não prestou: o sujeito saiu fumaçando, dando coice no ar, cuspindo fogo. E Joana, sozinha, pôs-se em sua casebre de palha com portas de “meaçaba”, também feitas em palha.
Daí a pouco, contava Joana: o que viu “foi uma tempestade e um bicho fuçando, bufando e roncando e querendo botar a casa no chão” E Joana pôs-se a gritar: “Eu sei que é tu Zé Bicudo, eu sei que é tu Zé Bicudo” . Era como se quisesse espantar o bicho mas era como se jogasse gasolina sobre o incêndio. A situação só piorava. De tanto gritar na noite, despertou na distância o latido dos cães e o apurado ouvido da vizinhança que lhe vieram em socorro. Zé Bicudo deixou o local e ao amanhecer a falastrona, solteirona e despachada Joana da Mangueira mudava-se daquele mangal e contava para todo o mundo o seu pesadelo acordado, naquela noite.
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As versões sobre Zé Bicudo eram terríveis. Certa feita, na noite, quando ele encontrava-se a um balcão, à espreita de uma cachaça, chega um sujeito metido a garimpeiro. Duas pingas no juízo, “fobando” valentia. Viu Zé Bicudo e, insinuante e proposital, puxou um 38, bateu-o sobre o balcão e desafiou “qualquer bicho” que o cercasse pelo caminho, na noite: “Caio de bala”! E insistia em bater o revólver sobre o balcão. Àquele tempo, revólver e bala naquele meu embora pacato lugar era coisa do quotidiano. Ninguém levava a sério. E a polícia ficava a 30 quilômetros e nunca aparecia por ali.
Mais uma e mais outra no juízo e o elemento saiu com o revólver na cintura, montado em seu cavalo. Zé Bicudo que permaneceu no local sem dizer uma única palavra, saiu ao terreiro e... executou um grunhido, qual um uivo tétrico de cachorro, em lua de mês de agosto, que dizem ser agourento e de mal presságio. Conhece? E voltou par a beira do balcão tão calado como sempre estava e sempre era. Conta-me o quitandeiro justo da bodega onde se deram os fatos e a cena, que no dia seguinte, o rapaz foi encontrado “todo obrado e mijado” e perdido no mato. Seu cavalo “desmalhou-se”, perdeu o revólver e o atrevido chegou em casa pelos braços dos outros.
Recente, me contaram que numa certa noite as pessoas em grupo, aguardavam um transporte para irem a uma festa a uma distância mediana de 13 quilômetros em estrada de chão. Zé Bicudo estava pelo meio, na dele. Na hora da partida, um circunstante o convidou: “Vambora Seu Zé”. Ao que o personagem respondeu: “Vão andando que eu chego lá”. E quando lá chegaram Zé Bicudo fazia tempo que havia chegado. Versão outra do mesmo sentido (noutro episódio), também mostra um Zé da Gorda chegando inexplicavelmente bem antes que os demais.
Contava-se também que Zé Bicudo, idade avançada, metia os seus grogues numa roda com a “canalha”, que ali quer dizer: turma, rapaziada, molecada. Aí um deles aproveitando-se do estado etílico do velho lobo, provocou: “Tu não vira porco coisa nenhuma. Isso é só invenção. Se tu vira me prova”. Prova não prova; prova não prova. Zé Bicudo resolveu provar. E... quando já estava virando um bicho as pessoas em volta começaram a gritar apavoradas: “Ave-Maria, cruz-credo, deixem disso; deixem disso”. E o velho lobo aos poucos foi voltando ao seu normal. E tudo o que ele disse foi uma sentença só: “não brinquem comigo que eu não sou de brincadeira”.
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Eu era moleque e morria de medo de “CURRUPIRO”. Currupiro, diziam, é um negrito, entidade das matas, de uma perna só, pé virado para trás, com uma cobertura em vermelho, sempre com um cachimbo à boca. Faminto por fumo. Diziam que ele assobiava e provocava dor de cabeça nas suas vítimas, que também perdiam-se pelo matagal. Diziam que ele jogava as pessoas contra o espinheiro, também afugentava e protegia as caças contra os caçadores. Gregório de Bastião era um “afro-descendente”. Tudo o que possuía era uma mulher, quatro filhos e uns quatro cachorros - todos esqueléticos e subnutridos. A gente via o pauperismo materializado em seus corpos e feições. De lavrador quase não tinha nada. Era caçador em tempo inteiro. E, com os seus cachorros, muitas vezes na distância, dormiam pelo mato.
Conta a lenda que Gregório era “empautado com CURURUPIRO”. Dava-lhe fumo que o deixava em lugares estratégicos no mato e tinha uma incrível facilidade em capturar caças do mato. E naquele meu sertão, absolutamente ninguém, tinha o faro e o fado de matar tantas caças quanto Gregório de Bastião.
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