“HOJE EU VOU ENCHER A CARA”
Pouco mais de meados dos anos sessenta. Eu tinha meus vinte e poucos anos. Naquelas lindas tardes de domingo a Jovem Guarda estava no ar. Roberto, Erasmo, Vanderléia, Golden Boys, Renato e Seus Blue Caps, Jerry Adriani., Trio Esperança... E põe gente nesse baile!!! A esse tempo eu me ufanava de morar na Casa do Estudante Secundarista do Maranhão. Cursava o Técnico. Era feliz e não sabia!
Aos sábados, à noite, as “festinhas”, assim denominadas, espalhavam-se pelos bairros da capital, com suas luzes acesas. Eram bailes tocados a radiola e disco de vinil. Só os sucessos do momento! Para uma juventude que viveu aquele tempo! Os bailinhos nas casas alheias, sempre nas casas alheias, eram uma graça! Uma felicidade! Os filhos e filhas da casa, geralmente colegiais (moças e rapazes), faziam aquelas festinhas em casa com e papai e mamãe de olho em tudo que achavam legal, colaboravam, facilitavam, pois que se era de “zuar por aí”, brincar em casa, aos olhos de papai e mamãe era bacana, não era? A casa enchia-se de todo o tipo de gente e a intimidade do lar ia para o brejo, mas aquela zorra aquilo fazia parte da festa!
A festança tinha uma particularidade especial: o ingresso, a entrada! Os filhos da casa convidavam seus amigos, uns vinte, uns trinta, mas acabava que “A” convidava “B”; “B” convidava “C”, e “C” convidava a outros tantos Aí, a festa era uma enchente! Quando não era isso, os chamados “PENETRAS”, não convidados, festeiros de carteirinhas, aproximavam-se do fandango e... “encontravam um amigo” que estava lá dentro e dava um jeito e entrava. Fandango??? Aquilo era festa e belo naipe do social.
Enquanto os bailinhos tinham aversão aos PENETRAS, que eram os intrusos, não convidados; por sua vez os PENETRAS orgulhavam-se de suas investidas, da sua condição de “furão”, pois que mesmo sem ser convidados e vindos, por vezes da outra banda da cidade, acabavam participando de toda aquela balada na casa alheia. E orgulhavam-se de quanto assim aprontavam. Sentiam-se vencedores!
Naquela época, não se falava em violência nem em drogas nem estas aconteciam no meio. Era tudo muito saudável – moças e rapazes, todos geralmente estudantes, alguns empregados, grande maior parte talvez não. Ao que me lembro, polícia ou “carro da polícia”, nunca nem passou por perto daquelas festas, tal a tranquilidade, o ambiente ameno, sociável e pacífico que reinava no local. E as festas em regra costumavam encerrar-se às duas horas da madrugada. Ela legal!
Quando a “festinha” encerrava-se as pessoas tomavam seus caminhos, sempre a pé. Três a três, quatro a quatro – uns que iam abraçados – que arrumaram namoro na festa – alguns que já levaram de casa e grande maior parte que seguia solteira, solitária, apenas em companhia dos demais. Era tudo muito tranquilo! E então, tirava-se a camisa punha-se sobre o ombro e caminhava-se contra a brisa que vinha do Atlântico ou da Bahia de São Marcos. Era legal!
E chegava-se em casa, tranquilo, descansado até com abrindo a porta, sonolenta, esperando o rapazola ou a moçoila chegar, como bem assim era naquele tempo. A cujo tempo eu-VIEGAS era aquele encasquetado e empolgado morador da CASA DO ESTUDANTE, na Rua do Passeio, no Centro Histórico da cidade, no que eu considerava um privilegiado endereço “esquina com Vila Bessa”, com papai e mamãe no interior capinando roça.
De anotar que nas festinhas não rolava bebida alcoólica, não se tinha dinheiro para isso mas,.. às vezes... uma dose de Campari, uma outra de Vodka, uma dose de “cuba libre”. Nada demais, só uma “dosesinha” pra esquentar... Aconteceu que certa feita, numa dessas inocentes baladas, tomei uma dose de um aperitivo adocicado, leve, suave, gostoso, um tal de SAN RAFAEL, à moda, na época! Fiquei legal! Gostei da ideia! E então me prometi que um dia... chegaria o meu dia de SAN RAFAEL.
Não deu outra! Quando recebi a grana do emprego, esperei sábado chegar e decretei: “HOJE EU VOU ENCHER A CARA”. E então fui à mercearia que ficava a meio quarteirão da Casa do Estudante e pedi uma garrafa de SAN RAFAEL. Todinha, inteirinha só para mim! E, ainda por cima acompanhada de ameixas secas em calda, conforme sugestão do vendeiro! Tomando SAN FAFAEL e este pegando de mansinho, quieto e sem que eu me desse conta.
Já com mais de meia garrafa do aperitivo no juízo e, porque ninguém é de ferro, deixei o local e fui à Casa “tirar água do joelho”, como se dizia. Lá embaixo”, havia um cisterna com capacidade de uns vinte mil litros d´água, à beira da qual a gente tomava banho, lavava roupas, e aprontava das nossas. Era dia domingo. O local estava ermo, em silêncio, sem um cristão por perto. Então ali mesmo, com tanto SAN RAFAEL no juízo, resolvi fazer um “brinquedo” que se praticava em tempos de sobriedade: Deslizar sobre o lodo que despojava como um gramado, no local. Vai uma... vai duas... vai três... na quarta! Pum-bum, baticumbum, burungundum. Pá pá, pá pá-pá e... ca-ti-ri-pa-po. Desequilibrei, dei com a cara na parede, no cimento do lodo e ao chão. Tudo rápido, e violento como um raio, um furacão!
Alguém na distância ouviu e veio pela curiosidade! A esse ponto eu estava aos frangalhos e tudo o que ingeri desde as dez da manhã: buá... buá... buá... foi tudo pelo lodo água abaixo. Aí tomei o banho gelado dos justos, lavei a cabeça, voltei à mercearia, acertei as contas e... SAN RAFAEL... NUNCA MAIS, NUNCA MAIS. Tanto assim, 50 anos depois, eu passei a semana inteira tentando lembrar do nome, até que, finalmente consegui lembrar daquele aperitivo doce, leve, saboroso e tentador – SAN FAFAEL. Também lembrei da minha frase: “HOJE EU VOU ENCHER A CARA”.
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