... UM PAU PRA TODA OBRA

ELE-DÊ era um roceiro que punha uma roça todos os anos, como tantos outros. Perto de sua casa havia, como ainda há, uma tradicional capela da Conceição. O  notável vizinho era, em vida, o guardião da capela. Era ele o encarregado dos “aperparos” para a festa anual da Santa Conceição. Ele mesmo quem liderava as novenas, o levantamento de mastro, a grande festa  de 8 de dezembro, a festa de baile e até mesmo os trabalhos da cozinha. Se estivesse vivo, estaria envolvido até o talo com os festejos que se aproximam, faltando menos de duas semanas!

Onipresente em tudo, era ELE-DÊ  quem dava as cartas em todas as nuances e detalhes do festejo. Tudo, tudo. Na hora da procissão não era diferente. E lá se vai ele puxando benditos, conclamando o povo ao “selêncio” e ao respeito e ao acompanhamento do cortejo. Enfim, era o homem de sete vezes sete instrumentos, ao tempo do festejo tradicional e secular daquele pequeno povoado. Hoje, porém, “geneticamente modificado” pela interferência dos padres italianos que ali chegaram, faz anos. O reggae, a “música pauleira e a bebida alcoólica, dominam os festejos.

O protagonista e principal carta do baralho no festejo anual do lugar, também praticava num grande barracão anexo à sua casa -  o festejo de SÃO GONÇALO. Uma festa com fitas em cores, com muito brilho, pedido de “jóias”, dança dos “balhantes”, muita comida, cânticos acompanhados de  um solitário violino, quase uma nota só. Um festejo-ritual basicamente extinto. Do qual, por ali,  tem-se apenas vagas recordações  e nada mais. E não é a toa que um prefeito amigo, mandou construir-lhe um barracão em telha e alvenaria, ao lado de sua casa, ao prestígio daquele benfeitor.

Evidentemente que um homem com tais atributos e, sobretudo, pela postura e impostação, era um líder, nato e carismático! Uns quatro filhos, outros tantos irmãos mais meia dúzia de vizinhos e  simpatizantes, ELE-DÊ além da liderança que ostentava em seus prestigiados festejos populares, acabava granjeando um “capital político”. E se estivesse como sempre esteve ao lado da “situação”, melhor ainda. Pronto! Era esse o herói e carta boa do baralho da política dominante, naquele seu tempo que se esticou por tantos anos e mais anos. Entra prefeito e sai prefeito e quem era que não queria  tê-lo ao seu lado? Quem? Quem?

Quem seria doido a ponto de ignorar ou postergar no seu palanque aquele homem de todos os santos, de todas as rezas, de todos os festejos, de todas  as popularidades na sua meio-vizinhança? Um cabo eleitoral e tanto! Uma figura jamais dispensada nos embates eleitorais, sempre do lado da situação. Figura de proa nos bailes de São Gonçalo e Festas da Conceição. Uma moral e tanta! Um pau para toda obra! Com toda essa santidade, ao chegar de viagem  dava uma volta de três léguas para deitar com a sua  “caseira”, que era como se referiam aos relacionamentos extra-conjugais.

Esse senhor veio de ser nomeado “Subdelegado” daquele lugarejo, uma espécie de “inspetor de quarteirão”, figura e autoridade  que infundiam não só o respeito mas também impingiam o medo e acabava conquistando antipatias e desafetos. Afinal, como diziam por ali: “polícia não é amigo de ninguém”. Pronto! O homem agora, além de rezador, mandante de bailes de São Gonçalo e chefe dos festejos da Conceição, o que na nas beiradas  do asfalto  pode-se chamar de “sangue bom”, era ao seu tempo, também, uma AUTORIDADE! Esse sim era o cara!

- Vai que na sua “jurisdição”, aconteceu um furto que ali se chama ROUBO. ELE-DÊ vestido de autoridade ficou envenenado. Aquilo competia a ele, claro!  “Catuca daqui, catuca dali”, primeiro suspeito, um sujeito chegado a uma “diamba” e figura carimbada como “malfazejo” daquelas bandas. Pronto! Estava decifrado o enigma!  E lá mandaram buscar  naqueles cafundós-do-judas, um tal de PÊ-CÊ que veio como ali se dizia: “de um jeito  ou de outro”. Era começo de noite quando PÊ-CÊ chegou com as mãos amarradas na casa do subdelegado, que servia de Delegacia.

Logo acende-se a lamparina à querosene e o sub-delegado e dono  situação, autoridade que ali representava o prefeito municipal, a chefatura de polícia o delegado-chefe e até o governador se fosse preciso e põe-se em interrogatório. “...Me conta tim-tim-por-tim, não mente que é melhor pra ti”. Determinou a autoridade encarando firme o indivíduo. PE-CÊ que não era de agüentar pressão, foi logo entregando: Manué de Car..., Zé Fubico, Fulano e Sicrano. ELE-DÊ  desconfiado, imprudente, ignaro e coitado, imediatamente mandou intimar de papel passado todos os referidos. E assim, na noite, lá estão todos os “suspeitos”, coniventes, receptadores e partícipes da lambança, à sua sala, a uma fumacenta luz de lamparina à querosene.

Recomeça o interrogatório. Bem ao lado, ao canto da sala da casa do roceiro jazia um reluzente machado que havia trabalhado naquele dia. E quando o réu asseverou que Manué de Carl... era partícipe  e conivente, este que estava disposto a negar de pés juntos (a minha palavra conta a dele) e “provar” que a versão do acusado era “pura mentira”, não se agüentou. “Ofendido” e “injustiçado” e diante de tamanha “aleivosia” daquele “aleivoso”, pulou em cima do machado e... de uma só machada interrompeu para sempre o depoimento de Pê-Cê que mal começava a “vomitar” o acontecido.

Assassinado Pê-Cê, em plena sala da casa de morada de ELE-DÊ,  foi como se o mundo tivesse acabado bem ali. E não mais restou pedra sobre pedra. O julgamento acabou. Os suspeitos escafederam-se. O ambiente virou um furdunço só!  Um corpo ao chão. PÊ-CÊ de ladrão, agora era só um defunto. Desmoralização, agruras e decepção foi o que restou. Uma fatalidade jamais imaginada! Fato que naquele pequeno povoado era “coisa de fim do mundo”.  ELE-DÊ diante de tamanho desastre acabou sendo “afastado” do cargo de sub-delegado e de “inspetor de quarteirão do (seu) povoado ... .. e adjacências”, como ditava a sua portaria de nomeação. 

Perdeu a nomeação mas não perdeu o mando de campo, em seus bailes de São Gonçalo, nas novenas, e levantamentos de mastros e Festas da Conceição. Ele mesmo que puxava os benditos, pedia “selêncio” e respeito do povo em bebedeira, alvoroço e “converseiro”. Ele que puxava os cânticos da procissão  no dia da grande festa da Conceição. Festa/s que se realiza/m até os dias de hoje, como também “não perdeu o fado” de dar  uma volta de três léguas, para deitar com sua “caseira”, à chegada de suas viagens. Logo ele que tanto se vangloriava de ser... um pau para toda obra.