RETRATOS DA VIDA
Seis horas da tarde. Pelo comum é hora dos cristãos retornarem às suas casas. Recolherem-se, encerrando a jornada do dia. Os animais também são assim. O gado, as ovelhas, os pássaros e as aves, principalmente. Os mendigos também são assim: rodam o dia na pedilança tentando sensibilizar os cristãos – “esmola pro ceguinho, esmola pro ceguinho”. E assim, vão tocando a vida e as desditas, fazendo da féria diária o seu ganho principal, ao passo que a “aposentadoria” do “salarinho” como dizem muitos por aí, acaba sendo um “bico”. E segue a rotina e segue a vida.
Era pouco mais seis da tarde, o sino da matriz já houvera anunciado a Ave-Maria. O tempo já estava “meio-truvo” e só agora aquele ceguinho que enfrenta sua batalha diária na grande Imperosa, estava de volta para atravessar o Rio Tocantins - ele que mora na Bela-Vista, do outro lado de lá. Ele, conduzido (amparado) pela sua guia, ambos pardos, andrajosos, magricelos, da mesma proporção corporal, seguiam numa conversa solta, a boa altura.
A mulher, pelo visto, era uma acompanhante remunerada, quer dizer, deveria ganhar uma cota-parte do ganho do ceguinho. Sim porque, desde a origem a Bíblia já ensina que “... digno é o obreiro de seu salário” (Lucas 10:7). E seguem os dois, conversa solta, ao lado da calçada, andar apressado, rumo ao Tocantins, do outro lado da cidade. A certa altura a mulher se fez direta: “... É, SEU ZÉ, tô aqui pra lhe ajudar, acompanhar você; já disse que vou lhe ajudar, então eu vou lhe ajudar, mas é só isso. Eu não vou me deitar com você. Eu não vou me prestar pra ser sua mulher . Eu não misturo as coisas. Trabalho é trabalho e ser mulher do patrão é outra coisa. Não conte comigo pra deitar com você”.
Fim de papo e o ceguinho emudeceu. Carambas! Foi um banho de água gelada! E seguem os dois, apressados naquele “meio-truvo” de começo de noite, para ingressar na balsa atravessar o Rio Tocantins, pois eles moram na Bela Vista, do outro lado de lá.
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Agora são sete da noite, em ponto. Aqueles dois sentados sobre a calçada do supermercado formam um casal. Quiçá moram ou dormem em algum casebre das bandas do Bairro Caema ou talvez pelas encostas por aí. Estão num papo firme, numa conversa a dois, de bom tamanho porém a mulher investe mais sobre seu homem e este fica na defensiva, no vai da valsa, empurrando com a barriga como dizem por aí. Dando uma de Migué, de sonso.
A mulher ataca, na moral: Cadê o dinheiro? Cadê o conforto que você me dá? Cadê a boa vida que você me prometeu? Cadê? Cadê? Aí o sujeito que na hora de “ganhar” aquela aeronave de tantos voos pelos ares, ele que prometeu mundos e fundos, agora fica só na defensiva: É... é... é... Cê sabe, né? Cê sabe, né? Inton que ocê acha pouco mas eu to fazendo das tripas coração.
Aí passa um sujeito destrambelhado que não tinha nada a ver com o coloquial daquele sofrido casal e solta uma pilhéria: ARRE ÉGUA!!!
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Aquela outra é uma doidela estampada e declarada. Vive dependurada na vida. Mora com os pais num favelado sofrido das encravas da beira-rio. Sai pelas ruas da vida e costuma pedir em lojas, supermercado, padaria ou para ocupante de automóveis, a quem à sua estratégia, costuma chamar de “pa”. E é pai pra cá, pai pra lá e vai ganhando a vida. Já andou parindo uns dois por aí, mas ultimamente, tem estado livre desse “negócio de bucho que só atrapalha”, como ela mesma diz.
Faz algum tempo, sabe-se lá como quando e onde, adquiriu um celular desses de UM E NOVENTA E NOVE”, que se tornou o seu quindim de Iaiá, seu bem maior, seu objeto de realização pessoal, todo escroteado – alegria e sonho de sua vida! Punha a música pra tocar e ficava doidona como se quisesse exibir aquele maquinaço coisa de UM E NOVENTA E NOVE! A esse tempo ela estava acasalada com o Perneta. E todas as noites dormia com o perneta ali nas beiradas de um Box da área nobre, do lazer-social, na esplanada da beira-rio.
Era madrugada. Seus parceiros de infortúnio, tanto quando ela expostos às intempéries do chão e do frio. Ainda assim, ditos agasalhados queriam dormir, continuar dormindo. E ela, doidona com o seu celular de um e noventa e nove tocando todas, detonando todas. Regue, pancadão e outras pauleiras e doideras. Simplesmente insuportável! Intolerável!
Aí um MALUCO e condômino do infortúnio e das intempéries e do chão frio, tudo ali amontoados um ao lado do outro, resolveu protestar. Exigiu silêncio, sossego mas ela empolgadona, não se deu por vencida, não se entregou, encheu-se de razão. Perneta, lombrado e cabeça feita, dormia a sono solto. Aí foram às vias de fato e o sujeito mandou um coco servido na cabeça da mulher. E ela vociferava: “Vou mandar um primo meu te matar, vou mandar um primo te matar”. E perneta no outro mundo, em sono profundo, nem se deu conta de que sua parceira, estava em apuros.
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Mais uma vez era fim de tarde. Hora dos seres viventes se recolherem, disso sabemos nós. Estamos naquela “baixada alagadiça” da Rua D. Pedro II, no Bacuri. Lá vem uma dupla que sugere pai e filho. O pai um ceguinho, esmoler. O filho o guia do pai. Era visível a caminhada dos dois, rumo à sua morada, naquele final do dia e fim da batalha de pedilança a um e a outros. Parece até que a gente está vendo essa luta: Uns que esticam a mão, alguns centavos - outros que ignoram. Mas não nos iludamos, aquilo vicia o cidadão. Tem gente que não larga o “ofício”, nem que a vaca tussa.
Voltemos. Seguem os dois. ceguinho calado, puxado pelo filho. E o filho cantando solto, a todos os pulmões, como se estivesse no quintal da sua casa, num momento de plena descontração e ares de contentamento, gesticulando até! Como quem simula e dedilha uma guitarra e se desdobra em gestos de quase joelhos ao chão e ao uso das cordas vocais nas alturas: Perguntaram pra mim / Se ainda gosto dela / Respondi, tenho ódio / E morro de amor por ela /// Hoje estamos juntinhos / Amanhã nem te vejo /// Separando e voltando a gente segue andando entre tapas e beijos ...
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