“AGERMIRO DE BASTIÃO” 
4ª edição - revista e ampliada

Naquele meu chão feito a foice e facão, mutilado em crendices e roças de crua sobrevivência - tanto quanto ainda o é,  entre tantos  roceiros analfabetos que ali mourejavam, “AGERMIRO DE BASTIÃO” era mais um entre os demais. Já maduro, Agermiro de Bastião mudou-se daquele lugar com mulher e filhos  e dele não mais se teve notícia. Sabia-se entanto que morava pras terras de São Vicente Férrer ou São João Batista, “praquelas bandas” como diziam - um lugar que fazia-se distante à falta de estradas, de meios de comunicação. E daí a “lonjura” que se fazia no imaginário dos seus parentes e aderentes.  Ou noutras palavras: “Agermiro, abriu a terra e se meteu”, que era como assim também diziam.

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Eu era ainda era um estudante de direito, vinte e poucos anos, quando tomei conhecimento de que ARGERMIRO DE BASTIÃO matou um homem e encontrava-se preso na cidade de São João Batista. De  livre e pessoal  iniciativa atravessei o mar, peguei carona em cima de carroceria e fui ter com Argemiro, na prisão. Argemiro, espontaneidade  e clareza, contou-me o fato a modo seu, disse que primeiro pagou e tornou pagar pinga a pedido da vítima. Depois foi chicoteado por esta e em luta corporal iniciada pelo sujeito, Argemiro feriu-o  com a própria faca do “desinfeliz”. Foi com essa versão que me propus à defesa.

A Comarca de São João Batista, então sob a direção do eminente Juiz  Dr. JÚLIO ARAÚJO AIRES (hoje, desembargador aposentado) - ressentia-se de dificuldades primárias. Não havia promotor, muito menos advogado, o que levava o Juiz a contorções para fazer justiça e assim nomear pessoas leigas à defesa. Eu, então,  em meados do Curso de Direito, fui aceito plenamente quer pelo Juízo como pelo acusado. E, doravante eu ali, pelo meio.

O júri veio de ser realizado quando eu estava às vésperas da  formatura  em 1972, motivo pelo qual não colei grau com a minha turma; enfrentei percalços à colação em solenidade exclusiva e ainda fui apontado (soube depois) como um “desertor” que esteve à margem (marginal), no processo de conclusão do curso. Pura intriga mas, ainda assim, faziam-se os ossos e os louros e o batismo de uma profissão que carrego faz 43 anos. E que só apanho e tento aprender e vejo louvaminhas e tamancos endeusados a cada novo dia.

O Júri de Argemiro para mim foi batismo, realização, foi meta. O tribunal do júri era uma praia dos meus sonhos em que só entrei e não consegui sair. Até hoje! Apanhei e continuo aprendendo; é como digo. Argemiro foi condenado à seis anos de reclusão  mas diante de um calouro/neófito, ainda no bê-a-bá da escola, imagino que fiz a minha parte diante de um promotor-escolado que pedia de 12 a 30 anos para o para o matador. No júri aconteceram fatos que até hoje, 46 anos depois,  reservo-me ao direito do silêncio.  E nunca mais tive notícias de Argemiro de Bastião.

Mais tarde, quando voltei de férias  à casa e ao chão dos meus pais e por ali uma festança, quem eu vejo com os braços cruzados, imponente, na dele, assim... recostado com o pé sobre a parede? AGERMIRO DE BASTIÃO!!! Fui lá, cumprimentei-o. Me disse que havia cumprido a sua pena, falastrão,  sorriso largo, esbanjava um ar de mansidão, segurança e liberdade. Foi como pude interpretar o ator, sob o personagem. Nada não. Argemiro era um lobo que se vestia de cordeiro.

Em seguida, ainda na festa vejo uma “roda” de gente. Era Argemiro, ao centro, qual um artista ao picadeiro, convergindo todas as atenções, ao contar sua vida na penitenciária, suas bravatas e experiências na prisão. Observei que ele capitalizava seu tempo na cadeia para posar de “herói”, “capitão” ou “chefe” naquele mundo de incautos em pés no chão.  Pensamento, ação e herança maldita da penitenciária. Era ele em conversa aberta, em carne e osso,  mostrando seu currículo e atributos, como se dissesse: “Eu sou o cara”!!!

E sentia-se como que aplaudido como o “novo herói”, que atravessou  incólume o fogo e as trevas da penitenciária. Logo ele, àquela altura, cujo filho vindo do garimpo adquiriu-lhe uma terra, situou os pais e ele, Argemiro, além de cavalo de montaria e da fama (negra) do submundo da penitenciária, também tinha terras próprias para suas tarefas. Realmente ele era o cara!!! E, novamente, nunca mais tive notícias de “Agermiro de Bastião Folhá”.

Recente, estive com o meu irmão AFONSO  e comentamos sobre “Agermiro de Bastião”. Me disse Afonso que Argemiro foi a uma festa no Canta-Galo e o reggae rolava solto, pesado e nas alturas. Argermiro que não era de dar ponto sem só, foi lá, umas três pingas nos juízo  e... pediu Waldick Soriano. Negativo! Ah, pra quê?! Argemiro quebrou tudo e não deixou nada sobre nada. E desafiava: “agora quem achou ruim / baixa boca no capim/ e vem em mim”. E insistia: pode vim de dois a dois; de três a três.... Trinta e oito na cintura e peixeira viva reluzente e reluzindo nas mãos, dispostas a tudo e a todos.

Foram então  “decretado”, chamar a MATA-SETE, um respeitado desordeiro do lugar, a quem narraram o acontecido e pediram ajuda para desarmar e amarrar o tal sujeito.  “Seu Sete”, ainda  se arremeteu à empreita mas no batente da saída, resolveu perguntar: “sim, mas quem é que está lá?” E quando lhe disseram que era AGERMIRO DE BASTIÃO, aí Mata-Sete aconselhou: “Gente, larguem Agermiro de mão, será que vocês não têm Juízo?”.

Balbino, filho de “Virisso de Norato”, me conta que numa tapação de casa, Agermiro chegou sem ser convidado. O ambiente estava alegre e feliz, tudo o mundo no “laboro”, numa boa e cantando. Mas quando Agermiro chegou, o clima esfriou. Argemiro puxou conversa e sem mais nem menos foi logo dizendo que naquele “pavoado” não tinha homem. Zé Matias um “rapazote” pacato ali presente, contestou. Daí a pouco sem mais nem menos Argemiro enfiou a faca em Zé Matias e, como troco recebeu uma paulada. Argemiro deixou Zé Matias e prossegui “inticando” com quem tivesse pela frente. “E o almoço daquele dia, ficou para o jantar”.

Afonso também me conta que certa feita, Argermiro de Bastião chegando à casa de Dona Cafusa, encontrou a um canto, uma faca tala-larga, 12 polegadas, pontiaguda, amolada. Aegemiro pegou a faca que logo achou-a “bonita e aprumada”; contorceu-a sobre os braços e admirou-a em “horas esquecidas”, Mostrava-se enfeitiçado pelo “ferro”. No pensamento, Dona Cafusa esconjurou-o o quanto pôde e quando Agermiro de Bastião saiu dali, ela destruiu para sempre aquela faca. E vociferou: “Ave-Maria-cruz-credo,  Credo em cruz, Ave-Maria”!