MEMÓRIAS DA CASA DE ESTUDANTE

Era assim: a casa do estudante, na Rua do Passeio, no Gavião, esquina de Vila Bessa,  lembrava uma grande “colônia”, uma “república”, como se dizia naquele tempo de moradias coletivas. Gente de várias cidades do interior. Tinha até do Ceará e do Piauí. Tudo estudante do segundo grau – Ginásio e científico. Grande parte uns mais pobres do que outros. Alguns empregados. Poucos que recebiam “mesada” dos pais e outros até mesmo dos avós. 

Era visível o estado de pobreza de muitos lá dentro. Mas quando saíam (lá fora) era basicamente tudo a mesma coisa – “um pelo outro”. Roupas poucas. Grande parte lavava e engomava a suas próprias roupas. Outros improvisavam o seu café. Tinha gente que acabava de engomar a calça, vestia-a ainda morna e a garota já estava esperando na parada. Iam para o cinema.
Apesar  dessa república, dessa moradia coletiva, ninguém mexia com nada de ninguém. Ninguém sentia falta de nada. As portas dos quartos  eram abertas em tempo inteiro e ninguém vivia “pernando”, pelos quartos dos outros. Lá embaixo tinha a GERAL – que era um quarto grande com maior número de moradores. O destino dos novatos era sempre a GERAL. A turma lá de cima sacaneava – dizia que os moradores da GERAL eram “asilados”, quer dizer, jogados pras cobras. Nada não! Eram tão moradores quanto os demais. Eu mesmo morei na GERAL e quando subi “lá prá cima”, meu coração ficou dividido. Eu não tinha certeza se queria deixar a GERAL.

Lá embaixo, por trás da casa, existia uma grande CISTERNA, subterrânea, com capacidade para acho que uns trinta mil litros de água. Lá eram uns oitenta machos e nunca faltou água. E até quando faltava, a vizinhança, por ali se servia. E todas as manhãs, a macharada em pelo, tomava banho ao lado da cisterna, outros lavavam roupas. Estás pensando o quê? Que tinha sacanagem. Negativo!  Todos respeitavam todos, até porque ali, de regra,  era tudo farinha do mesmo saco.

Durante a semana, e durante o dia, a casa ficava pela metade, pela terça parte. Quase deserta. Toda aberta. Não havia problema algum. Só alguns poucos cursavam durante o dia. E quando dava dez  ou pouco mais da noite, a turma ia chegando da colégio noturno; uns em seguida aos outros quase em fila. Eu achava interessante aquele compromisso! E não havia notícia de bebida alcoólica nem de fumo. Salvo exceções que mal eram percebidos pelo convívio coletivo. Toda as noites a casa era iluminada. Nos finais de semana, a casa iluminada era outra! Uns iam para o cinema, outros para os clubes populares, outros ficavam pelo terraço frontal, outros pegavam  o bonde. E como ninguém era (nem é) de ferro, um ou outro  em dupla ia para a ZONA.

As refeições, quando tinham refeições, costumavam sair na hora certa, mas às vezes atrasava. O Herberth  “conterrâneo”, era bancário. Calça apertada  e metido a bonitão. Pegava um prato e uma colher e começava a batucar e a cantarolar. No início a turma estranhou, mas depois acompanhou. Nos finais  de semana não havia jantar. Então já estava decretado: “Hoje a janta é no seu Baú,”, este dono de um barzinho sofrido que ficava à margem do Gavião, na rota que vai para o LIRA /BELIRA. Um refresco com pão! Pronto uma janta e tanta! E lá iam dois a dois, três a três e lá vinha dois a dois, três e todo o mundo  “jantado” e satisfeito. Ora se tava! Chegava em casa, cada qual pegava a cama no seu quarto. 

Era o meu tempo de GERAL. O Carvalho contava charadas, piadas e lia um livro de horóscopo de dez anos atrás. “Diz aí bicho, o teu signo”. E dava certinho com a vida de todo o mundo! E haja sorrisos! Era o nosso lazer em grupo! O sopão era metido a folgado mas não estava com nada. O Fontenele queria ser comunista, tinha Caetano Veloso como seu ídolo.  O Juarez esse era um “asilado legítimo” vendia até o cadarço do sapato e vivia envolvido com suas venéreas. Tornou-se Promotor de Justiça. O Barbeirinho vendia bugigangas, tinha uma lambretta e era metido a “novo rico”. O Argemiro era um coitado. Arrumou um emprego no Estado e  depois não falava com os pobres.

Pelé chegava da Zona altas horas, engraxava os sapatos e punha-os dentro da mala, com suas roupas poucas, surradas e zeladas. Tornou-se Oficial-PM. O escravinho tinha fama de bem dotado e contava estórias de suas “catrevagens e travessuras” que dariam um livro que seria esgotado já no lançamento! O JAGUAR era machão. Na brincadeira, dançava homem com homem. Ele sempre faziam o papel feminino. Uma fera nesse teatro! Os irmãos Tico e Teco era tão unidos que dividiam até o último caroço de farinha e vestiam-se sempre iguais. O Cleviegas ajoelhava-se ao lado da cama para rezar. Queria falar difícil e vivia discursando. Ele engomava a calça que, ainda quente, saía com a namorada que já lhe esperava na parada de ônibus. E ia para o cinema. Chegava em casa e dizia uma frase solta: “O escurinho do cinema é legal”. Só isso!

O Lacerda era como gato: “jogava a pedra e escondia a mão”. Por causa de moça quase entra em boca. O ADONIAS, na curiosidade, resolveu investigar a profundidade da cisterna de água. Não fosse o Vítor que tornou-se Oficial-PM e no último segundo amarrou um cordão em sua perna e o Adonias já era. Virou executivo de uma multinacional. O  “BACANO”, tudo pra ele era “bacano”. Pobre coitado. Virou executivo de empresa nacional. O PêCê era filho de lavadeira, no interior. Exemplo de retidão humildade e caráter. Era ecônomo e diretor da casa. Formou-se em economia. Tornou-se diretor em empresa pública. E sempre esteve na cúpula aonde passou, deste os tempos colegiais. Exemplo de bênção de DEUS.

O Aluísio era neto de fazendeiro e latifundiário no interior. Era boa vida e também diretor. Queria ser químico industrial, especializado em petróleo. Não sei por aonde anda. Tinha dois sujeitos lá, A e B, que aparentavam viver numa boa, mas seus irmãos C e D,  comiam na tábua.  O Ribeiro era metido a diretor. Era chamado de “Ribeiro GROSSO”. Não era querido nem amado por ninguém. O Miguel soprava e abanava com as mãos o prato quente. Havia uma turma de veteranos, todos de um quarto que se chamava POTE. Era uma espécie de “estado maior”, de faz de conta. 

O Acúcio era metido a “especial”. Não dava bola para o povão, porém recebia as mesuras do seu parente, SOPÃO. O José Alves trabalhava numa loja sofisticada. Era o único que a turma fazia da cama dele “gato e sapato”. O Burrão, em princípio no banco, tornou-se Oficial do Exército. Tote Padilha era um requisitado músico ao trombone. Tornou-se Oficial-PM, em Brasília. Lá na casa – que tantas vezes diziam que aquilo era um zoológico, de zoológico não tinha nada  e quem não deu pra nada, virou advogado, como eu!