“CUNSURTA”, quer dizer: CONSULTA
Anos 50 e mais adiante, por aí assim. E então morávamos todos lá no mato, longe de tudo e de todos. Ninguém conhecia uma bicicleta, nem luz elétrica, nem geladeira. E só os poucos mais abastados possuíam um rádio. E uma casa de telha? Quase todos eram analfabetos e viviam de uma roça de sobrevivência, em poucas “tarefas”. O terreiro era de plena pobreza, luta e sofrimento, nas terras onde deixei o umbigo e o chão da minha primeira identidade. Ficar doente ali, era um deus nos acuda! O grande temor de qualquer trabalhador, naquelas bandas era “o fundo da rede”. Fundo da rede quer dizer: doença, sofrimento, estagnação. Para o sertanejo, aquilo era como uma cadeia, uma prisão. Doente, ficava angustiado, porque não podia enfrentar a capina da roça e as pelejas do seu roçado; aquele batalho cru que era o seu dia a dia: sua roça de mandioca, arroz e feijão, sua farinhada em “casa do forno” – que se traduz no ganha-pão, sustento e sobrevivência da família.
Doente, as primeiras e quase sempre alternativas eram os remédios caseiros ao seu alcance: uma raiz ou casca de pau, um chá de folha, um azeite de andiroba, uma banha de galinha, ou de cobra - uma gororoba que ali tem nome. Prostrado, vinha Chiquinha Bacurau e rezava. Sabia tudo sobre “carne aberta” – distensão muscular que o roceiro herdou do serviço bruto. Quando não era dona Chiquinha, uns tantos socorriam-se de João Vermelho, um igualmente roceiro que tinha fama de CURADOR. João Vermelho rezava, acendia velas, indicava uns chás e, como sempre, umas gororobas que só ele sabia. Era visto como um feiticeiro. Falasse em João Vermelho, o tempo fechava!
E quando a doença pegava pesado, com o roceiro “amucegado” no “fundo da rede”, o jeito era “mandar consultar” na Vila. A VILA era um dia de viagem, em ida e volta, em dura costa de cavalo. Numa viagem e portador de ocasião, mandava-se fazer uma consulta com o dono da farmácia, que o roceiro chamava de “cunsurta”. Então o portador traduzia a doença, o que aliás, por vezes, tomava conhecimento através de um recado ou até mesmo de passagem: “... diz pra ele que o fulano tá no fundo da rede, sete dias com febre, dor nos quartos,todo entrevado, tremedeira, fastio, não tem um pingo de sangue...”. O farmacêutico pergunta: Tá obrando? Desinteria? Não come nada? Tem vômito? Pergunta mais: como foi que isso começou? - Arrancando uma mandioca, responde o portador. No final lá se vem o diagnóstico: distensão muscular “da braba”.
E vai o farmacêutico, circula em frente às suas prateleiras de remédios populares, daqueles bonificados que no jargão do meio é “três por um” e tome receita! Vende, empacota, recebe. E se despedem. O sujeito monta no cavalo, toma umas duas pingas para encarar o estradão, cospe no chão e crava de volta. Pra quem está prostrado no fundo da rede há uns quatro dias e para quem chega lá pela noite, é tudo esperança. E aí, pelo portador, vem o “modo de usar”: - Olha, beber muita água, por isso que está magro; repouso; pode “banhar”, comer com limão, nada de carne de porco, pimenta nem pensar; andar pelo quintal, pegar o sol da manhã. Não pode deitar com mulher. E os remédios: Este aqui é pra amarelidão; este aqui pra dor nos quarto, este outro também para os quartos e este xarope é pra desincraviar o que tá encraviado. Aí o portador completa o seu ato samaritano: e bebe logo, gute-gute-gute!
O doente toma aquilo e já no efeito psicológico, com o remédio da farmácia da VILA e passado pelo “farmacêutico”, logo-logo sente melhora; vai recuperando aos poucos. Lá pelas tantas da noite, deitados em redes ladeadas, lamparina acesa na vigília. E, como que procurando... procurando... ele passa a mão nas partes da mulher. Ela adverte: Tu já tá? Inda nim bem amiorô, tu já ta cum teu isprito?! Riem-se, apagam a lamparina, silenciam, dormem até a madrugada. Sim, porque ali o dia começa na madrugada. E acordam felizes da vida. Melhoras à vista!
Agora, quer ver coisa braba: É quando chás e gororobas não dão jeito; quando Chiquinha Resadeira não deu jeito; quando João Vermelho despachou. Remédio da VILA não deu jeito. Aí, tenha dó! O sujeito está de olho fundo, “só o couro e o osso”. Semelhante situação é para os gravemente-acidentados, outros que caíram do cavalo, esfaqueados, baleados. Vão mesmo é no fundo da rede. Como? Ata-se uma rede esticada num varal (tipo caibro), põem o doente lá dentro. Um ombro de cada lado e mais uns três para o revezamento, quase todos sem camisa e uma garrafa de pinga rolando de boca em boca faz parte da viagem. Aí é carregar e puxar chão: quatro léguas! Ninguém para pra nada. Bebe água “de carreira” e olhe lá!
Para o doente aquela viagem é uma tortura. Por vezes vai gemendo da hora que sai até a hora que chega. O gemido desperta a adrenalina dos companheiros e aí o pique é maior. E puxa chão e rola pinga e haja converseiro! No inverno, então, a coisa pega! Por vezes põem uma lona sobre a rede e toca caminho. E quando o chuvão é pesado, encostam na casa e descansam aquele armadilho sobre o parapeito. No estradão as perguntas se sucedem: quem é? O que foi? Como está? As respostas vão voando com os caminheiros.
E quando chega na VILA? É outro sofrimento lá no Posto médico. Lá não tem internação. Só um ambulatório. Seu doutor roupa branca das estrelas, indiferente e nem aí, faz a consulta: abre os olhos, aperta a barriga, mede a pressão, faz pergunta, manda enfiar um soro. Passa uns cachés, umas injeções e dá as costas. Caboclo morre de medo de injeção. Aí tem que arranjar por ali um parente tão pobre ou mais pobre como o pobre doente. E haja sofrimento! Muitas das vezes o sujeito não tem um tostão furado no bolso. Naquele ora-e-veja, se vira, mete a cara na vergonha e espeta um fiado – vai pagar com uma farinha cuja mandioca está nas primeiras raízes. Ou, quando não, vende o cavalo de serviço, seu bem maior.
Muitas das vezes o doente, dias depois, volta ao seu lugar. Desfigurado, amarelado, mal podendo andar. Daí em diante é água do poço, um franguinho da beira de casa, peixe-de-espinha vez por outra e, na mistura, arroz branco e farinha de puba. Dias depois, com um vidro de Biotônico que vai bebendo em colheradas e umas pílulas de “paulo-famoso” no bucho, sujeito pega uma “tenência”, já está melhor e logo-logo recomeça o eito de foice e facão na coivara do seu “sangáu” uma roça temporona. Complemento da lavoura.
Quer ver outra maratona de sofrimento? É quando na VILA não deu jeito. O brejeiro agora vai para a CIDADE. Antes era de barco, três dias de viagem e maresia e o estômago do avesso. Agora é de lancha. Vai porco, vai bode, galinha, carne-salgada; couro-de-boi, vai carga. vai gente, vai tudo. Em tempos de Verão, no Boqueirão, lancha some no banzeiro. Haja promessa pra São Benedito e Senhora da Conceição! Chega na cidade “aos pandarecos”, como dizem. Por vezes sem um acompanhante e tão perdido e amarrado quanto os porcos que, na viagem, grunhiam ao seu lado. A maratona de agruras na CIDADE, o que pega é o “dinheiro do ônibus”. E na hora de parir menino? Chama VANJICA, na Belas Águas, que fica uns quatro dias na casa da “parida”. E ganha um cala-boca, quando ganha.
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