EM TEMPOS DE COCO E TUCUM
(este texto faz exatos sete anos que escrevi ou, no mínimo, reescrevi)
Naquele esticadão de meio de mato e fim do mundo, o povo se virava mesmo era na roça bruta, no sol quente, na dura luta do roçado, no pilão e na mão de pilão, no machado, foice e facão e de resto na “mancepa”, que é o porrete para a quebra do coco babaçu, ao machado - isso de janeiro a dezembro, o ano inteiro. E quando lhe veio o direito ao “aposento”, aquilo sim, benefício e justiça social com sabor de libertação e alforria para os velhinhos envergados e vergastados da dura luta, do sofrimento e força bruta do sol a sol.
Havia só meia dúzia que, em parte se livravam do sol bruto: eram os “barraqueiros”, os alfaiates e costureiras e... os ambulantes. Barraqueiros eram pequenos negociantes que, a um cômodo à frente de suas casas, punham uma pequena bodega de secos e molhados e compras de coco e tucum, costureiras e alfaiates “formavam-se” por perto e eram só uns dois ou três. Os ambulantes vendiam redes e foguetes. Havia também os “carapina”, feitos a enxó, serrote bruto e martelo – que assim como os demais, tinham sempre “um pedacinho de roça”.
E assim, sem lápis e sem cartilha, “de mamando a caducando”, era tudo enfiado na roça. E, sua grande glória era ter, no jirau de casa, arroz-em-casca para o bucho da família, outros tantos para a venda “no preciso”. E nesse mesmo paiol, a farinha d’água e o milho para a “criação de terreiro”. E, finalmente, bradar aos quatro ventos que não precisava comprar farinha. Era assim a gente do meu lugar: marcada por essas agruras e outras tantas.
As casas de chão batido, quase todas em palha, da parede ao teto, havia ali um grito de analfabetismo e pobreza, tocado a foice, machado e facão. As mãos calejadas eram porém vestidas do mérito do trabalho honrado. E os pés rachados e eternamente descalços deixavam os rastros de quem se orgulhava da honra. E assim criavam-se filhos e netos. Dentro de casa, as “mobílias” de valor não iam além de um pote, uma banca de pau com quatro tamboretes e uma mala. E só para os mais aquinhoados: um rádio que veio depois, um petisqueiro, um cordão “de ouro” e até um velho revólver ou um rifle papo-amarelo. E um cavalo de cangalha (de serviço). Esse era o retrato dos “possuídos”, daquela gente. E, quem tinha um revólver? E quem tinha dente de ouro? Esse então sorria com as paredes!
Naquele chão, havia um pedaço de desvalidos que mesmo tocando uma “rocinha” de sobrevivência, também escapavam na quebra de coco e tucum. Um trabalho como qualquer outro, mas para o sertanejo do meu lugar, aquele tipo de “escape”, era o fim da picada; um trabalho a que muitos viravam a cara e não se sujeitavam. Hoje, interpretando, eu imagino que a cata e quebra de coco e tucum era um trabalho “sem futuro”, secundário.
O que me traz tudo isso à tona, agora, é exatamente esse vendaval enlouquecido que sacode a economia do mundo. Quebra de bancos, de financeiras, do mercado imobiliário e que despenca bolsas de valores de todo o planeta. E deixa as grandes potências do dinheiro e do mercado perdidos e sem saber o que fazer. É que, naquele tempo, havia o sobe-e-desce do preço do coco e do tucum. Diziam até que o produto ia para o “estrangeiro”. Atacadistas e industriais sabiam por telegrama/s e “barraqueiros” sabiam do aumento ou da “baixa” do preço pelo rádio. Eu era garoto, via aquele sobe e desce do preço do coco e do tucum e, como todos ali, ficava igualmente perdido sem entender essa ciranda. E até me perguntava o quê e porquê aquilo – coco e tucum - iam fazer no estrangeiro!!!
Nesse sobe e desce dos preços, barraqueiros e quebradeiras de coco e tucum lá no mato, ficavam só vendo e sentindo a dança dos preços. Mas, ao que me lembro, havia momentos em que a quebra do coco não valia a pena e o tucum - esse, então, pior ainda. Tanto assim que o tucum cascou fora do mercado. Hoje, quando vejo essa QUEBRADEIRA mundial, que mais do que nunca em toda a vida, sacudiu e sacode o dólar americano cuja moeda regula e submete o nosso real e de resto sacode toda a economia e lastros financeiros do planeta - do que eu leio e ouço; ouço e leio e fico pouco ou nada a entender essa QUEBRADEIRA. É bem aí que volto os olhos e o pensamento para aquele tempo do comércio e da quebra do coco e tucum e ficava sabendo pelo rádio, da dança (alta e baixa) dos preços.
Eu que faltei às aulas de economia política e direito financeiro em cadeiras da faculdade pública, permito-me a entender agora, nos desvãos dos tempo e da mente essa oscilação da bolsa de valores; essa coisa de mercado que determina a economia; as exportações; o/s preço/s; a (des)valorização da/s moeda/s e daí a marcha para o bicho papão da inflação. É bem aí que eu à distância, imagino porque subiam e baixavam o preço do coco e do tucum. Coco e tucum das quebradeiras. QUEBRADEIRA que agora nem é de coco nem de tucum, mas das bolsas de valores, dos mercados financeiros, dos bancos do mundo inteiro.
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O trabalho de “quebração” de coco ou tucum era visto por ali como uma tarefa desvalorizada porque todo o costume e meio de vida daquele povo era enfiado na roça, nos sangáus (espécie de lavouras secundárias - menores e temporonas), cujos trabalhos exigiam dedicação integral em sol-a-sol, da família inteira e outros tantos. Daí que a grande maioria daquela gente não dispunha de tempo para coco e tucum. Daí um analfabetismo crônico e amargo que se espalhou naquele mundo sem porteira, a céu aberto.
O serviço de “juntação” de coco era cruel. Mulher e filhos com o jacá às costas enfiavam-se mato adentro sujeitos aos infortúnios e surpresas do matagal: tocos, tiririca, cipó-mochila, cobra, “tucanguira”, maribondos. E aventuravam-se de “coqueira em coqueira”, de olho comprido, em cujas aventuras, muitas vezes, sujeitas aos riscos, perdiam a picada (o caminho) de volta. E na volta? Aquele jacá pesado sobre cabeça de mulher e filhos, senão da mulher sozinha. Na volta caminho comprido, fome e sede - eis que um dia inteiro de “juntação de coco” pelo mato, quase não era nada. Mas era tudo a que podiam fazer. O processo de “quebração”, esse então um capítulo à parte! É a mão humana exposta entre o porrete (“ a mancepa”) e a lâmina do machado ao chão. Era a sobrevida de uma gente que não sabia o que era roubar, nem matar, nem assaltar, nem estuprar. Nem pedir esmola.
E o tucum? Esse, então, era o fim da picada. Era um serviço visto como coisa de “quem não tem o que fazer”. A sua coleta, ali sim: puro espinho! E a quebração? Pedra sobre pedra. Por vezes o tucum espirrava e haja canela e costela! E foi ali a nossa primeira noção sobre “bala perdida”. No meu sertão era assim: envelhecia-se na pobreza e morria-se de analfabeto mas a honra, o nome limpo, coisa alheia, o respeito – esses em primeiro lugar. Os tempos mudaram!
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