O JIPE DE CHIQUITINHO

(Este texto foi escrito e publicado em O PROGRESSO há mais de vinte anos. Certo dia, do nada, recebi um telefonema de uma figura que jamais a vi nesta vida: era a filha do personagem que se manifestava interessada em publicá-lo num livro que acabara de escrever EM MEMÓRIA ao seu pai. Pedia autorização. Não me fiz de rogado, porém nunca recebi sequer um exemplar da obra. A vida tem dessas coisas).

Início dos anos 50.  Eu deveria ter uns  seis anos de idade “aprendia a ler” na Escola do Tio Mundico, com obrigações a “argumentos em tabuada” aos sábados; bolos de palmatória tinindo, olhos vermelhos, coração em súplica e joelho ao caroço de milho, na releitura da lição. Esse merendão de encher bucho e estimulante à freqüência escolar, bancado pelo governo, estava longe dali para frente em quase meio século. Tio Mundico era um solitário e voluntário facho de luz naquelas trevas do analfabetismo em foice e facão. Luz elétrica, bicicleta, picolé, pasta-de-dente, esferográfica, água gelada e a gente nem sabia se isso existia. E um “sapato” aos pés... era só de tempos em tempos – e olhe lá!!!

Era tempo de verão. Verão em que todo o bicho pode andar. Numa frente de serviço, bancada não sei por quem, melhorou-se ali uma tal “estrada de  rodagem”, que era o que alguns também chamavam de “estrada real”. Pois bem,  logo-logo anunciou-se que daí a uns vinte e poucos dias, ali passaria o Jipe de Chiquitinho – um velho político, daquelas bandas mais adiante, experimentado nas artes e artimanhas de ganhar eleições, em tempos de urnas de pau, amarradas com barbante.

Pois bem, durante esse tempo de espera e ansiedade, o povo daqueles sertões e mais outras tantas léguas depois não mais dormia, não mais sossegava. Nas rodadas de terreiro, nas feitas de baile; nas farras-de-caixa, nos balcões de bodega de pinga, e nos eitos de capina e coivara, e entre uma pinga e outra, tudo o que se falava era na espera dessa passagem triunfal e histórica do jipe de Chiquitinho. Era como no dizer do meu velho pai, para ilustrar tamanha ansiedade: “o povo vivia caindo a arca”.

Até que enfim chegou a longínqua e tão sonhada data! Naquele dia, o povo só deu meio dia de serviço na roça, ou nas casas-de-farinha. E outros que nem trabalharam pois que precisavam tomar banho, vestir roupa limpa e caminhar distância em chão até a “estrada de rodagem”, para enfim ver esse bicho do outro mundo que por ali passaria - o Jipe de Chiquitinho! Eu, no pueril dos meu seis anos de idade, lógico, estava  no meio dessa “fanxina” caminhando “um distanção danado” a pé, em meio ao converseiro de meus parentes e tanta gente naquelas veredas que ali se chama “caminho”.

A esse tempo, ele que mais tarde tornou-se o meu eterno cantador LUÍS GONZAGA (o nosso Gonzagão), era além das cantigas-de-boi, a quem quase único, o povo fazia-lhe a voz. E entoava-se uma canção: “Bate a enxada no chão/ Limpa o pé do algodão/ Pois pra vencer a batalha/é preciso ser forte, valente robusto/ E nascer no sertão/ Tem que suar muito, pra ganhar o pão / Pois a coisa lá, não é brinquedo não”. E lá se vou eu, cantarolando esse meu agora pranteado Gonzagão que como absolutamente ninguém cantou o chão desta gente, rumo à “estrada de rodagem”, à caça de ver de passagem – só de passagem - o jipe de Chiquitinho! Ah se esse Jipe parasse pra nós! Suspiravam uns. Ah se a gente pudesse ao menos passar a mão no jipe! Sonhavam outros. E eu lá, um figurante da trupe e vivendo a história.

Ficamos todos ali naquele ponto de convergência em terras de Sertãozinho de Mundico do Sertão de onde vinham pessoas de Vila Pereira, Carro Virô, Encruza, Laranjal, Nova-Aurora, Vai-Quem-Gosta, Vai-Quem-Quer; Santa Maria, dos Diolindo e Ciro Campos; da Grota da Macaca e tudo o mais. E deu cinco horas e deu seis horas e nada de jipe! Entre aquela gente, havia uma sofrida senhora, descendente de escravos que como ela mesma diria que “ainda pegou uma pontinha da escravatura”, uns oitenta anos; entortada nos serviços da lavoura, na arrancação da mandioca e tarefas da capoeira; feita a fogo do sol da roça, de dentes encardidos e estraçalhados: era mãe-Carolina. Mãe-Carola, de muitos filhos e netos e assim tida  e havida naquele meio de mundo era uma matriarca, de um matriarcado que ela nem se dava conta; de voz fortemente anasalada, sotaque pesado; de boca torta pelo costume do cachimbo que “faz a boca torta”. Um ícone de zombarias a cada frase que pronunciava.

Ali naquele meio do povo e na ansiedade à estressante espera do JIPE, ninguém era de ninguém. E mãe-Carolina, septuagenária e alquebrada, primeiro acocorou-se; depois, cansada, sentou-se ao puro chão e esticou as pernas para dentro da “estrada de rodagem”. Nisso lhe corre um neto, adverte a avó, ao que esta lhe responde com o seu tom nasal de sempre: “intonse mê fii qui é pra vê o carru apitá”. O meu irmão Zé Branco, hoje gerente de banco oficial, três filhos no doutorado, assim como toda nossa parentela e vizinhança estava no meio dessa “fanxina”. E até hoje, “até hoje” ele se questiona sobre como e de onde mãe-Carolina teria a noção de que um JIPE poderia apitar!

Agora são “sete e pouca” daquela noite de verão; com o povo em alvoroço e o coração em tum-tum-tum de ansiedade, quando de repente, lá no esticado da estrada de rodagem, na saída da curva, surge um facho de luz; dois faróis cortando a noite, “alumiando na rodagem”, tremulante e correndo rápido na nossa direção. Mãe-Carolina, uma mais que amassada do presente e visionária do futuro, mesmo de pé mas na beira da rodagem, realizou enfim o seu desejo: o Jipe de Chiquitinho passou apitando e seus passageiros, todos de pé, acenando, dando “adeus” e deixando aquele povo emocionado, realizado, feliz da vida porque viu um jipe pela primeira vez! Um jipe que, de um Chiquitinho cordial e em campanha política, deixou aquele “cheiro de gasolina”, e o poeirão de confraternização e mais ainda: passou tocando aquele que viria a ser o meu eterno Gonzagão: “bate a enxada no chão/ Limpa o pé do algodão/ Pois pra vencer a batalha/É preciso ser forte, valente robusto/ E nascer no sertão/ Tem que suar muito pra ganhar o pão / Pois a coisa lá não é brinquedo não...”.