“LEVANTA ZÉ E VAMOS PRA OUTRA”!!!
José de Maria era filho de Maximiano de Adesilha e de Maria de Aurora. Era conhecido por ZÉ DE MARIA ou ZÉ DE ORORA. Morava com a sua família, em terras de Vai-Quem-Gosta, uma “geba” encravada naquela fim de mundo, de descentes quilombolas, perto das terras do Vai-Quem-Quer, de “Domingo de Ogenha”. Zé de Maria (ou Zé de Orora) era um negrote forte, disposto, corajoso e trabalhador. Seus irmãos Bonifácio e Agnelo e João Damasceno moravam na cidade (na capital) e trabalhavam na estiva marítima. Então desde cedo Zé já trilhava pela cidade em idas e voltas, sem perder de vista o caminho de casa, o sítio frutífero de sua velha MARIA DIORORA. E assim Zé de Maria foi sentar praça no Exército ou, como diziam: “servir nos quartel”.
Contou-me Zé, certa feita, quando trabalhávamos lado a lado em corte de arroz na roça de meu pai que “os homens” queriam que ele engajasse no quartel mas que para não perder a tradicional Festa da Conceição E que todos os anos se realiza naquele lugar, preferiu então dar baixa. - Porra Zé, deixou o quartel para vir se enfiar na roça? Perguntei-lhe em cobrança. - Pois é, ali tem muita lei, muita “caxiagem”, muita ordem, “sim sinhô, não sinhô, quero morrer” e eu não podia ver os velhos (os pais), quando quisesse. Depois disso... e a festa da Conceição? Foi como me respondeu.
Mais tarde interpretando aquele Zé de Maria, podia ver que aonde ele chegava queria aparecer. Era o tal! Tanto que um dia voltou ao seu lugar fardado, “cabeça de cuia”, revólver e sabre na cintura só para tirar uma onda, para “aparecer”. Então ele “encarcava” uma pinga, e só falava da vida, do dia-a-dia e dos afazeres e das atividades no quartel. Fala de suas experiências na vigília do quartel. E, naquilo, Zé era o maior! Zé-de-Maria era o cara! Vestiu farda, pegou em arma! Serviu nos quartel!
Naquelas terras, em que o grande povão era quase tudo analfabeto, ou até no máximo a cartilha... ou primeiro ano da escola, Zé de Maria era mais um, pelo meio. Àquele tempo, eu cursava algo como a segunda série ginasial, estava aos doze, treze anos de idade. E estando nós dois no mesmo eito de serviço, Zé, ex-soldado do quartel, precisava sobrepor-se, manter a pose, continuar por cima e então resolveu por a mim em dificuldade, me “encalacrar”, me “por no bolso”, que era como diziam por ali. E então lançou-me uma charada, uma fábula que, no fundo, era uma questão matemática.
Disse Zé: “Umas rolinhas estavam sentadas na copa de uma árvore, quando ali sentou um baita de um gavião, morto de fome, querendo comer elas. Então o gavião, dando uma de gentil e educado, disse: “bom dia minhas cem pombas”, ao que as pombas responderam: “cem pombas não somos nós; porém com outro tanto de nós, com mais a quarta de nós e com mais ti, meu gavião, aí sim, cem pombas seremos nós”. E voaram deixando o gavião falando sozinho”. E desafiando a minha segunda série do ginásio, ele me perguntava: Quantas pombas tinham na copa da árvore?
Zé, se queria me encalacrar, de fato me encalacrou. Não tive ali, em pleno trabalho de corte de arroz, debaixo de sol quente e na rija do meu pai, como lhe responder à inusitada questão matemática com gosto de charada. E Zé de Maria fez silêncio sobre a resposta. E a vida continuou... e só mais tarde, quando eu contava a mesma charada a colegas meus, vi que aquilo era uma questão de solução fácil, uma equação de primeiro grau, simplista e fácil. E guardei na mente para dar a resposta à Zé de Maria, na primeira oportunidade.
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Zé de Maria era “pau de dar em doido”, bom de serviço, um grogue de vez em quando e “não gelava uma parada pra seu ninguém”. Juntou-se a ROMUALDO, um rapazote seu vizinho, filho de dona Moça, neto da velha Auta, esta mãe de João de Auta, gente de mãe-Carolina, um povo que teve um pé na escravatura, como eles mesmo diziam. A dupla ZÉ DE MARIA e ROMUALDO era imbatível em serviços de roça. Empreitavam juntos, trabalhavam juntos, viviam juntos. Onde estava um estava o outro. Comiam com a mesma colher,bebiam no mesmo copo. Respeitavam e eram respeitados.
E até nos fandangos por ali, dividiam as despesas com absoluta igualdade. E segue a amizade. Certa noite, quando voltavam do serviço para casa, ROMUALDO convidou o amigo para cantarem. Cantar toadas de bumba nas noites, nos caminhos, para espairecer na escuridão, era uma costume antigo daquela gente. Zé de Maria não gostou da proposta. – Cantar??? Isso é coisa de gente besta, de gente à toa, vociferou. ROMUALDO “não se deu por achado”, também não perdeu o rebolado e sozinho pôs-se a cantar. Ah! Pra quê?! ZÉ DE MARIA, que não era de perder pra ninguém, brusco e ligeiro-ligeiro, deu uma cabeçada em Romualdo e jogou-o ao chão. E montou por cima e bateu só na cara até “amolecer os dentes”. Foi um nocaute e tanto! Depois “se pabulava” e dizia que “só dormindo” perderia uma briga para Romualdo.
Aquela taca sofrida, o Zé montado por cima, as escoriações, o corpo doído. os “dentes moles” e o zum-zum-zum do povo, tomaram conta da alma e do juízo de Romualdo. Aquele chão não lhe era mais o mesmo, não lhe cabia mais. Ele não encarava mais as pessoas, vivia enfurnado, cabisbaixo, precisava dar o troco. E como Zé de Maria, continuou morando na casa de Dona Moça, mãe de Romualdo, este mudou-se para ali mais adiante. E, em jejum, ingeria água de limão com pólvora para manter o sentimento de coragem e o ódio vivo ao inimigo, que foi como Zé, vindo “dos quartel” ensinou a Romualdo.
Naquela noite, tangido pelo acre do limão com pólvora na garganta e no juízo que ROMUALDO, faca afiada e pontiaguda na cintura, foi bater na casa de Dona Moça (sua mãe). ZÉ DE MARIA estava deitado, naquela “madorna”, mais dormindo do que acordado. E Romualdo, de um ponta-pé, arrasou a sofrida porta em esteira de palha, só teve tempo de dizer “levanta Zé e vamos pra outra!”. E quando Zé de Maria que dormia com a faca na rede e um ferrão ao seu lado, tentou levantar-se, foi recebido com uma facada à altura da garganta que atingiu, porém, o seu braço direito. Perdeu sangue e as forças. Foi carregado na rede para a Vila e pegou o caminho da cidade mas ficou em parte inutilizado para sempre! A polícia nem sequer tomou conhecimento.
E Romualdo “capou o gato”, evadiu-se e homiziou-se em terras de Penalva. Romualdo, porém, continuava perdendo, sentia-se foragido, escorraçado do seu lugar. Meses depois voltou com revólver carregado e faca na cintura, pronto para encarar Zé de Maria. Certa noite encontraram-se num velório, cada qual para o seu lado, cada qual mais odiento e odiado. E Romualdo pronto para matar o ex-amigo, bastava ele dar um passo na sua direção. E Zé de Maria bufando como um selvagem, não pisava ao chão. E cada um de olho no outro, esperando pela investida do outro. Mas, enfim... ficou só nisso.
Mais tarde, quando fui levar a resposta-matemática da charada do gavião para ZÉ DE MARIA, este me contava com um treiteiro e macabro e fingido sorriso no rosto o seu desejo de “acertar as contas” com ROMUALDO. E dez anos depois quando me encontrei com ROMUALDO, este me dizia que foi com Zé de Maria e com sua vivência de caserna que aprendeu e ingerir limão com pólvora para ter coragem, para odiar e matar. E me dizia que se não desse o troco não descansaria, nunca.
A esse meio tempo eu relembrava aquele sorriso fabricado, macabro, ameaçador e disfarçado de Zé de Maria. E o limão pólvora e a faca pontiaguda e afiada (a ponto de tirar cabelo), de Romualdo. E todos o dois na treita e na espreita, assim como aquele treiteiro gavião: “... bom dia minhas cem pombas...” e o som do negativo e da revoada: “cem pombas não somos nós...”. E o grito que ecoou na noite: “LEVANTA ZÉ E VAMOS PRA OUTRA!”.
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* Viegas, se não escrevesse estes ...CAMINHOS, escreveria “ o olhar do pássaro sobre o galho”. E questiona o social. E-maill: viegas.adv@ig.com.br
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