Hoje não é o meu dia de escriba, o que, aliás, já vem fazendo fila, faz algum tempo. Estou aos “sete ponto três” de idade e os neurônios que se desgastaram pelo tempo, tantas vezes resistem aos exercícios da mente. E, para completar, qual um tijolo que cai seco do caminhão e se espatifa ao chão, deixei cair um tal  HD-EXTERNO, com quase dois mil itens, grande parte dos quais, arquivos do meu exercício profissional e outros tantos em textos que produzi para o rádio e para o jornal. Sinto-me perdido e aborrecido com tamanha perda dos meus rastros de vida que se fez de mera incúria, da minha parte.

Dita, porém,  o ditério que “quem tem Deus, não morre só”. E então fui ao CARLOS, o meu TI – Técnico em Informática -  que, como  quem conta estrelas no céu, recolhe gotas no oceano e junta grãos de areia na praia, está obstinado em recuperar os meus arquivos que eu nunca imaginei que ali estaria a minha riqueza, contida nos rastros que deixei para trás. Escriba à parte e chorando as mágoas, olhos avermelhados e agora com um sorriso no rosto, requento agora um velho texto do HD EXTERNO que CARLOS, o meu TI, a duras penas, recuperou.

DIA DE VELÓRIO

Na minha terra, na Baixada do Maranhão, um antigo chão de analfabetos, calejados e sofredores de sol  a sol, roceiros do começo ao fim da vida, qual num fim de mundo, ali era doído em tudo. Na hora da morte, aí então!... Aliás, que falando isso, lembro-me que, ao meu modo,  retratei com fidelidade um tema denominado “VIDA E MORTE, OZEBINHA”,  onde narrei a via crucis – dos dois filhos de  D. OZEBINHA, uma antiga vizinha. Da morte ao sepultamento.

Pois bem, na minha terra era assim: quando morria uma pessoa - saía uma criatura da família, pela “redondeza”, montado a cavalo ou a pé, avisando aquele falecimento. Ele mesmo com a missão de ir à procura do “carapina”, que era o fazedor do caixão. Por vezes o carpina não estava em casa ou estava viajando e isso era um suplício, pois que carapinas na arte de fazer caixão de defunto, ali não era coisa fácil. Só um ou outro e olhe lá! Zé Borges foi o mais notável carpina de caixão de defunto que existiu por aquelas bandas, seguido do filho, Herculano (Herculano de Zé Borges).

Ocorria, no entanto, que naquele “ora e veja” o operário não tinha prego ou havia emprestado o serrote e até nem sabia onde andava o martelo. Situação da mais difícil era quando não havia tábuas para fazer o caixão. Aí era um Deus nos acuda! Era preciso tomar emprestado ou fazer incríveis contorções até conseguir as indispensáveis tábuas para o feitio do “ataúde”. DONA INEZ, minha avó, essa era precavida: Tinha no alto de sua sala um jirau, no qual o seu caixão de defunto para a hora precisa. Caixão que o emprestou a seus vizinhos por umas três ou quatro vezes. Exemplo de precaução que fora seguida por outros filhos seus.

E então, com o defunto ao meio da sala sobre uma esteira que ali chama-se “meaçaba”, feita de palha de babaçu, o carpina  à beira do terreiro, debaixo da sombra, cuida do serviço. É uma espécie de herói do momento. Muitos deixam seus gestos ao defunto e voltam suas atenções para o operário e sua tarefa. Enquanto isso, a pinga vai rolando discretamente de mão em mão. Todos bebem no mesmo copo. O litro seca e vem outro. Concluído o serviço, um caixão tosco, sem acabamento, sem plaina, feito a prego, serrote e enxó, onde coloca-se o corpo. Agora sim, no caixão!

Lá fora, cuida-se da “boia” para  o povaréu. Geralmente um “capado” do terreiro. Se não tiver, se vira, toma emprestado, dá um jeito. A solidariedade, nesse ponto é natural e não pode faltar. Velório tem que ter “bóia”, um café regrado e uma pinga rolando, com uns tantos assim meio que “prá lá de bagdá”.  Naquele chão  tem dois cemitérios: o de “São Sebastião”  na estrada antiga que vai pra VILA e o de “Santana” que fica depois do Zé de Mariana, depois da estrada da Beta, perto do asfalto que chegou por lá. 

O sepultamento, outrora sem documentos (sem atestado médico, sem declaração de óbito).  O “enterro” segue um ritual. O caixão, ainda em casa, é içado com duas cordas, pendurado a uma vara, um caibro.  Dois homens um em cada extremidade carregam o defunto. Os  “carregadores”  no suor e na pinga, outros sem camisa,  se revezam. Essa maratona que se estica por  três, quatro, cinco quilômetros, com nêgo no grogue, é um falatório danado! Gritam, até!  Finalmente sepultam “o falecido” e, mais tarde, assim um tanto “destreinados” e sem os litros de pinga que secaram, voltam pelo caminho em fila indiana.
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Nestes tempos com bolsa escola, bolsa família, auxílio maternidade, aposentadoria rural. Minha Casa, Minha Vida e outras mesuras, O VELÓRIO está geneticamente modificado. Há um visível caráter de  festa e feriadão! Jovens, rapazes e “moças”, homens e mulheres, vestem roupa boa, calçam tênis, aprontam-se,  dão feriado e... vão para O VELÓRIO, como se fosse para uma festa! 

Chegam lá por volta das nove do dia em diante,  plantam-se em  namoricos ou conversas  fiadas pelo terreiro ou debaixo de árvores em volta e permanecem ali, como que num gesto mal ensaiado de solidariedade ao morto e à família  do morto. E estampam-se como quem diz:  “sou amigo e não abro”. E os entendidos a interpretar:  “Me engana que eu gosto”. Mas isso agora faz parte da “cultura” daquele lugar. E, claro, um lanche e a “bóia” não podem faltar. Também fazem parte da “cultura” e dá “boa consideração”. 

Até quando, finalmente, o corpo vai para o cemitério. Uns poucos que acompanham o enterro e quase todos que voltam para de onde vieram.  Depois a família do falecido – penso eu -  faz as contas e conclui que as despesas com a “bóia” e pinga para o povo foi bem maior que as custas do sepultamento. E haja  expectativa para o próximo DIA DE VELÓRIO!!!