A SEMANA SANTA  E O “DE COMER”

Vi, durante a minha infância, Naquele meu chão de pobreza e precisão, uma lacerante preocupação e repentina mudança de usos e costumes durante  os prenúncios bem como na própria  SEMANA-SANTA. Aproximavam-se o “Dias Grandes” e logo havia uma inusitada correria à busca e estoque de víveres elementares para o “de comer”. Havia assim,  uma brusca mudança da rotina, daquela gente.

Homens, mulheres e crianças sob o comando do casal patriarca, caía em campo: tapioca e bolo de tapioca, biscoito assado ao forno caipira, peixe seco, farinha d’água, arroz socado ao pilão; azeite de coco, milho verde, abóbora, amendoim, maxixe quiabo  e toda sorte de gêneros comestíveis - bacalhau, até – tudo em nome  e por conta da SEMANA SANTA. A duras pelejas, preparavam-se pequenos estoques a serem guardados em quartos trancados, como se o tempo fosse parar; como se naqueles dias todos tivessem que ficar recolhidos, enclausurados, impedidos da conquista do de comer.

E se o sentimento era (ou deveria ser) de JEJUM, era o tempo em que mais se comia. Pois havia de tudo! Daí que quando nas Missas de eventuais Desobrigas o padre que ali aparecia – raro como um cometa - derramava o seu SERMÃO, combatendo a preocupação alimentar durante a Semana-Santa. E nesse rastro, a condenação à gula, o pecado que dessa caçada emergia. Eu era um garoto e ficava dividido entre o Sermão da Desobriga e os dias fartos de tantas guloseimas e comilança naquela curta temporada, em dias de calmaria e “bucho cheio”

O meu avô era um “barriga cheia” por excelência. O meu pai não ficara atrás. E em meio a gente assim, sobrava para mim. E tome biscoito e bolo de tapioca e guloseimas tantas e fartas durante a SEMANA-SANTA. E  tempos mais de quando o Senhor Padre na Desobriga  extemporânea, voltava para reeducar esse povo, era um ensinamento em “tempo perdido”, pois que a cultura daquela gente  que mal e distante conhecia leite de gado; que um pão-dormido era  uma vez no mês, trazido da “Vila”; que uma bolacha  era repartida entre dois ou três - começa a partir daí a luta pela sobrevivência em que o “bucho cheio” era objeto de luta e preocupação.

A  SEMANA-SANTA era de sossego e quietude, de um manso nunca igual -  especialmente nas QUINTAS E SEXTAS-FEIRAS. Ali, naqueles dias, não se ouvia o derrubar das palmiteiras para a alimentação animal, nem cantorias de homens duramente suados, em ralação de mandioca nas casas de farinhada; tampouco cortes  de lenha a golpes de machado. Sentido porém era o canto das rolinhas fogo-pagô no terreiro de minha  avó (seus pássaros protegidos) ou das siricoras nos igapós em fins de tarde.  E nos Dias Sagrados, era proibido batucar, cantarolar, tomar banho,  e até pentear o cabelo. Escurraçar, bater ou gritar com um cachorro, nem pensar! E discutir irmãos entre si  era tema para um futuro e dolorido julgamento, no SÁBADO DA ALEULIA! De sorte assim que, em respeito à memória do “SENHOR MORTO”, como diria a minha avó, a  SEMANA SANTA  era sagrada e consagrada. E assim vivia aquela gente com um olho na sua fé e o outro no de comer;

A Semana-Santa, da noite para o dia, terminava na SEXTA-FEIRA. E, no sábado,  recomeçava, por igual, toda a maratona  e vida daquela gente. E os moleques que cometeram travessuras, desobediência ou  de alguma forma “mijaram fora do caco”, tinham contas a prestar. E daí o novo verbo: ROMPER A ALELUIA.   Era como se todo o “trastejo” da molecada, ficasse registrado em  um caderno imaginário de pai e mãe. Peraltices  acumuladas ganhavam peso ao “romper da Aleluia”. E aí neguinho, ao menor deslize, acertava as contas com o presente e o passado. Era a lei. Era a disciplina de pai e mãe fazendo gente para o presente e para o futuro. E eu lá, vivendo a história e agora, a memória!

“SEMANA CAÇADEIRA”:
Os tempos passaram, mas da minha mente, não passaram nem aqueles matagais de capoeirão levemente  soprados pelos Ventos Gerais, nem o coral das rolinhas-fogo-pagô do terreiro em grama rasteira da casa do meu avô, à  meia sombra do laranjal e com eles o resguardo da Semana-Santa. E, foi assim ouvi falar na “SEMANA CAÇADEIRA” e logo numa fração de instantes, tudo se reconstruiu na minha mente:  bolos e biscoitos de tapioca, aroz-de-pilão e peixe seco, e “bucho cheio”. E o sermão do senhor padre em Missa de Desobriga, censurando a gula.

Sim, mas... SEMANA CAÇADEIRA?  Entrementes já tinha ouvido falar de SEMANA CAÇADEIRA. E bem posso compreender que é justamente aquela pré-semana Santa da minha infância, destinada a “caçar” (a procurar) e amealhar e fazer monte de víveres alimentícios para o “Dias Grandes” – porque os incautos roceiros e  outros menos aquinhoados, com um olho na fé e o outro no bucho, estão preocupados em “caçar” o de comer. Daí que uma senhora de costumes interioranos, dia desses, com os olhos em brilho me falou que já havia guardado o azeite de coco, a tapioca, o  camarão, o peixe  e até a abóbora, par a Semana-Santa. E eu cá, comigo – tão longe e tão perto – essa, é a “Semana Caçadeira”!

Agora, refletindo no tempo a luta daquela gente, trabalhando para fazer  monte de víveres para a Semana Santa, bem posso reconstruir, a sua rude luta em sol a sol, numa guerrilha contra a fome do cotidiano. E não mais que isso. De sorte assim que, além da palha-de-morada, o chapéu da cabeça; enxada, machado e cutelo de serviço e o cavalo de carga, o grande sentimento de luta daquela gente era pelo “de comer”; dura luta pela SOBREVIVÊNCIA.  

Por isso que certa feita um lenhador, decantando o seu chão me disse: A gente planta uma mandioca e “nóis come”; planta uma cana e “nóis come”, planta uma banana e “nóis come”, planta um feijão e “nóis come”.  E assim, medo de fome e “bucho cheio” rondam a vida do homem que cava o chão. E quando o Senhor Padre ao verbo da Desobriga de tempo em tempo, condena o rancho  anual do de comer daquela gente  durante a Semana Santa, quiçá ele nem tenha notícias de que aquela gente pelo comum,  passa de barriga sofrida em inverno e verão e que, entre a fé e o estômago, na Semana-Santa -  em que para ele, caboclo do chão, a vida para - ele está preocupado com o seu “de comer”. E dos seus herdeiros:  seis... sete... oito...   dez,  até.