CATAÇÃO

E então vivíamos todos na roça, da roça e pela roça.  Posso dizer que as minhas passagens pela roça foram  temporárias. Ocorriam durante os períodos de férias escolares, dos sete até por volta de 20 anos, pouco antes de concluir o curso técnico em desenho, quando então consegui o primeiro emprego. Lembro, aliás, que quando fui consultado sobre minha disponibilidade de assumir o emprego, condicionei-o  à conclusão de uma tarefa de CATAÇÃO na escória da lavoura do meu pai.

Foi uma tolice minha? Sim! Deveria ter abraçado o tão sonhado primeiro emprego, no minuto-zero da minha admissibilidade. Afinal, o primeiro emprego foi sonho e pesadelo, tal a luta e os percalços à sua busca. Hoje eu olho para trás e vejo o quanto luta e percalços fizeram como fazem parte da minha vida! Como fazem até hoje!

São decorridos agora algo como 52 anos da última CATAÇÃO das sobras que fiz na roça do pai. Local e detalhes de que me lembro ricamente até hoje. Até hoje! Sim, mas e porque esse “papo de catação” agora? É que recente tive uma discussão jurídica com um colega de apoio e de repente vieram as catas, as sobras, os detalhes, as catações dos ângulos jurídicos. E daí a CATAÇÃO das roças do meu pai. Afinal, a CATAÇÃO é o seguinte:

O lavrador executa a sua lavoura e, a cada etapa, colhe as suas colheitas. Ora de milho; ora de arroz; ora de mandioca. O milho quando verde, o lavrador dele se serve em pequena parte para a comilança: milho cozido, assado, canjica,  pamonha. O período tem um sabor de festa, uma cor de alegria. Seco o milho ao pé, mais tarde o lavrador dobra-o (de ponta a cabeça), no intuito de protegê-lo contra chuva, pois se a chuva encontrá-lo de “cara” para cima, aí o estrago estará confirmado.  Mais tarde opera-se a colheita do milho e... alguns pés (ou moitas), acabam escapando da caçada  e ficando para trás, como que “perdidas”.

O arroz por sua vez, o roceiro em companhia de outros mais, executa a PANHA, ou... “corte arroz”. Conforme o plantio, a produção e o pessoal de serviço, o corte do arroz poderá estender-se em semanas seguidas e, geralmente, auxiliado por parceiros diversos. É também um momento alegre da lavoura, pois o cereal  é exaustivamente consumido na mesa rural. O lavrador então os cachos, agasalha-os em cofos (um artefato feito a partir da folha jovem do babaçu, murcha ao sol) e costuma guardá-los em um lugar estratégico da casa protegido contra animais, à espera da secagem natural.

Mais tarde, já suficientemente seco, bate-o, venteja-o (processo de qualificação e limpeza). Seco, “empaneira-o” em cofos de trinta quilos. E daí dá-lhe algum destino comercial ou guarda-o para o desaperto à mesa durante o ano. É uma honra e prestígio para o lavrador ter sua colheita de arroz guardada ao jirau, para o suporte alimentar da família.  Feita a colheita do arroz, conforme a terra e bem assim, geralmente o arroz dá uma segunda produção que ali chama-se “SOCA”. A “soca” é de pequena proporção mas... como diz o caboclo: “ainda dá uma comidinha”.  Então, a  “soca” resulta numa pequena e secundária produção.

E a mandioca? A mandioca é basicamente a última das lavouras a serem colhidas, isso porque a duração do processo natural de amadurecimento exige uma tarefa mais árdua e penosa,  como: “arrancação”, carregamento (transporte em lombo de animais), peso; tarefa de pô-la de molho em grandes e improvisados tanques. Depois vem a  “tiração da mandioca”, que consiste na retirada das cascas postas para a “pubagem” e daí todo um processo de fabrico da farinha - consistente num trabalho árduo que exige braços fortes, experiência, “tiração de lenha”, serviço à beira de fogo e muito esforço físico e suor. O trabalho  de “arrancação” da mandioca  afeta duramente a coluna vertebral do roceiro e mais duramente quando em área de babaçu, tal o “entaniçado” de suas raízes

Voltemos à CATAÇÃO. Na roça, então, ficam algumas moitas (pés)  de milho e alguns outros de mandioca. Vargens de feijão.  O lavrador já com a sua colheita principal retirada, volta agora à sua “capoeira”, que é como se denomina a ex-roça, ainda jovem e abandonada – sujeita a animais. E colhe as escórias, as sobras das sobras do que sobrou – que o lavrador aproveita como uma colheita secundária, que é. A essa tarefa,  como às escórias existentes, tudo aquilo é uma coisa só: A CATAÇÃO! Catação é, pois, o trabalho e o produto.