Antônio de Leôncio, meu colega de infância e amigo fichado até hoje e morador do mesmo lugar onde nasceu, é um roceiro encroado como os demais. Infância e juventude e a vida inteira na roça. Tirou um tempo nesse meio de caminho e foi aprender o ofício de carpinteiro com o mestre Antônio LAMBEDEIRA, tornando-se um morador de dentro da casa do mestre. Era um aprendiz aplicado em tempo inteiro. Dedicado, ganhou confiança e aprendeu o ofício. E quando passou a tocar a vida por contra própria, casou-se com FILHINHA, igualmente minha amiga, até hoje.
Antônio de Leôncio, além da honradez e da cidadania exemplares e o trabalho em primeiro lugar, também cultiva brincadeiras e “boiadas” de São João - um cultivo que, aliás, vem desde criança. Sempre que vou ao meu chão na Baixada, visito em sua casa, o meu amigo Antônio de Leôncio e uma coisa já se faz espontaneamente confirmada: um banquete em galinhada que a minha amiga FILHINHA prepara no nosso encontro.
Foi numa dessas que o meu velho amigo Antônio de Leôncio me convidou para uma BOIADA (Bumba-boi) em sua casa, para dali a meses depois. Uma festança que, aliás, costuma realizar. Tenho para mim que o convite de um amigo tem força de intimação. Não se descumpre. E no dia marcado lá vou eu com mulher e filho, em viagem de quase 700 quilômetros, até aonde o carro conseguir chegar. De lá em diante foram seis quilômetros, à noite, em chuva fina, a pé, em caminhos de atoleiro e de passagem por dentro de um ribeirão que lá se foi máquina fotográfica e filmadora, roupas molhadas.
Antônio de Leôncio, porém, recebeu-me no melhor estilo: água para banhar, quarto reservado, rede cheirosa, mesa farta e tudo o mais. De cara, logo entrosei no “cordão” do Bumba-boi, peguei um par de matracas e...assim meio desajeitado, acompanhei o ritmo e a brincadeira. E dela fiz parte e vivi a brincadeira. Nesse meio de caminho conversava com parentes, contemporâneos de um tempo, visitava bancas de guloseimas, conversava com o homem do “butiquim”, observava os costumes e, de quebra e transgredindo o preceito, ainda fiz uma “fezinha” num jogo de caipira – um jogo de azar que meu pai me ensinou e impôs a ficar bem longe.
Ainda na “primeira parte”, antes da meia-noite, pude observar facas e revólveres à cintura das pessoas e o sorriso em dentes de ouro – fazendo parte dos costumes daquela minha gente; cachaça rolando e compondo o ambiente da festa, como pude ver também ARGEMIRO DE BASTIÃO, um ex-presidiário, morador do lugar, ao centro de uma roda, contando loas e bravatas e experiências, em tempos de penitenciária - homicida e condenado que foi. E falava com um sorriso no rosto. Gestos largos. Era como se ele dissesse: Eu sou o cara!
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Agora é meia noite, em ponto! A brincadeira para. É hora da “LADAÍNHA em honra a Senhor São João” e, em meio aos homenageados: São Pedro, Santo Antônio e São Marçal, cuja trilogia compõe o período e as homenagens do festejo. No terreiro à luz de candeeiro, soltam-se busca-pés, um artefato em pólvora que rasteja no aleatório e põem a molecada no alvoroço. E, lá em cima foguetes explodem no ar, outros que ameaçam em acidente. Alípio do Vai-Quem-Gosta é brincante e rezador. É um decano do lugar, é um lavrador. Um homem respeitado e respeitador, honrado cidadão e pai de família. Ele puxa os benditos, a reza. Homens e mulheres em volta acompanham em coro. É um culto dito católico com tradições culturais daquela gente.
Enquanto isso, num barracão improvisado e ao centro uma grande banca, os brincantes enchem a pança, cada prato uma serra, uma montanha em arroz, carne guizada e torta. É o outro lado cultural da festança. E o povão, também, cada qual come o seu prato. E isso não pode faltar. Essa é a honra do dono da casa! Ali, como se sabe, festa boa é festa em que todo o mundo come. Isso é! Ladainha, jantar e aquela “tenência” que é a cesta após o jantar.
Enquanto isso, lá fora, grande parte da macharada ou ostenta uma faca pontiaguda ou um revólver na cintura. Aquilo faz(ia) parte da cultura. Há uns tantos que à chegada da festa, entregam suas armas no “botequim”, estas que são postas em um saco comum, ao chão. “Entregar a arma” reflete um gesto de bom sujeito. Qualquer dono de festa gosta disso. Também rola um jogo-de-caipira (um jogo de azar, com dados); vendem-se frutas, bolos, suspiros, biscoitos, café, comida, picolés. Uns namoram, outros bebem pingas e “pingados” (mistura de mel de abelha com conhaque); outros assediam e uns tantos aproveitam-se da noite escura e tocam-se mato a dentro ou ainda que pelas beiradas da casa-de-farinha e por onde der. E no próximo ano, quem sabe, o recém-nascido já vem nos braços para a festa de Senhor São João.
Lá pelas duas da manhã, luar bonito, terreiro cheio de gente, brincantes refeitos e descansados, voltam todos para o terreiro. O amo dá um apito e exorta: “Hei rapaziada, vamos lá meu batalhão pesado!!!”. A brincadeira recomeça. E o boi ENCANTO DE SÃO JOÃO volta com o pique total, bailando, brincando com “pai-francisco”, espantalho e atração, ele mesmo CAZUMBÁ, de pança cheia, alvo das atenções, fazendo estrepolias, “tilintando dinheiro e roubando a cena com a sua voz de espantalho e volta e meia jogando um “leriado” para alguma cabrocha de sua pretensão. O meu pai, Antônio de Inez, era bom nisso. A brincadeira vai até o dia amanhecer.
E só ao amanhecer do dia, o povo começa a se dispersar, a pegar o caminho de volta. Todos tresnoitados, com cara de ontem. Aparecem os bêbados; outros querendo brigar. Animais estropiados com suas montarias na pura carcaça. É o risco da desgraça. Lá dentro, a casa do anfitrião está aos farrapos. Toda a intimidade do lar se foi pelos ares, do avesso, salvo um quarto com fechadura, no qual ali me abarranquei com a companheira. E, naquela manhã e por muito tempo, o dono da casa feliz da vida. Feliz porque fez uma festa bonita; feliz porque pagou a promessa; feliz porque todo o mundo saiu gabando a festa e a comilança. Feliz porque não teve briga na sua BOIADA.
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* Viegas é o olhar do passo sobre o galho. E questiona o social – Email: viegas.adv@ig.com.br
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