Quando D. Joao VI, Rei de Portugal, exilado de sua pátria, pelas forças de Napoleão Bonaparte, veio  com a sua Corte dar com os costados no Brasil, então uma colônia portuguesa, trouxe além de outras peculiaridades da sua Europa, um artefato que aqui ficou conhecido como "BAÚ", uma grande mala destinada a acomodar e guardar objetos e utensílios pessoais do seu vestuário e da sua família, bem como adereços e ornamentos de sua mulher, a Rainha D. Carlota Joaquina. É que naquela época, não existiam por aqui nem  as Casa Bahia, nem Casas da Banha, nem as Pernambucanas e outras do ramo, ao passo que os "armários" de madeira eram, tradicionalmente, mais vulneráveis - num tempo em que não existiam nem ferrolhos nem cadeados.
Os armários (que hoje ora guarnecem ora expõem personagens e personalidades), eram "fechados" tão singularmente com uma simplista peça em madeira, de fabrico manual que gira em torno do seu próprio eixo a 180 graus, ao passo que baús eram  "trancados"  com  uma  "fechadurazinha", dessas da chave comprida numa época em que os ladrões eram exceções. Essas trancas primárias tinha sentido de "segurança" e confiabilidade. Baús, em verdade, existiram e pontificaram até meados do século XX. E, daí em diante, foram-se rareando e hoje são uma página virada em meio ao consumismo moderno.
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A minha avó materna  também tinha lá o seu baú, uma espécie de grande mala com a tampa curvilínea, abaulada, de formato côncavo - que era isso que dava graça e sentido ao baú. E destinava-se a acondicionar e guardar pertences pessoais da família, especialmente da matrona. Vestidos, saias, anáguas, corpetes e outras vestes, bem como as poucas "joias" que lhes pertenciam; cordões de ouro, rosetas (que hoje chamam-se brincos) e outros penduricalhos de um tempo - todos  veneradamente guardados e valorados como diamantes raros. Também guardavam-se documentos pessoais.
Ao fundo do baú, mantinha-se ali duas ou mais pedras de desinfetante ("naftalina") que tinham um odor característico a serviço séptico, afugentava insetos evitava mofo e impunha um cheiro agradável ao que lá dentro se guardava. Coisa da cultura de um tempo.  Lembro-me então que o baú da minha avó era forrado com um papel especial, floreado e que à tampa, pelo lado interno jazia um cartão colado que, segundo a cartilha paterna era uma lembrança do batizado do meu primeiro irmão. Insta dizer mais ainda que esse baú ficava a um canto dos aposentos da minha avó - como enfim das demais famílias e ficava postado sobre uma espécie de "rede" pendurada à boa altura, de acesso fácil e cômodo à quem dele fizesse uso ou manuseio.
Eu, aos cinco, seis, sete anos de idade, ficava extasiado ao ver aquela preciosidade e documentário, referente à lembrança do batizado do meu irmão, na Matriz de São José de Ribamar. Infrutífero, buscava detalhes e a compreensão daquele universo. Coisa de criança.  A minha avó paterna também tinha lá o seu baú, também ao canto dos seus aposentos. Era mais simples, sem tampa abaulada, de operariado mais pobre - uma grande mala em madeira e postava-se sobre "quatro pés", especialmente manufaturados para tal serventia - o que, aliás era comum àquele tempo, em meio aos "prevenidos".
O mundo deu volta e, faz anos, em terras do além (imagine!!!), uma querela sobre um baú foi parar na justiça, com direito à retratos de família, retratos do baú e tudo o mais. Uma das herdeiras, gestora do  patrimônio, pôs  a preciosa relíquia para reparos em um marceneiro de ponta-de-rua. O desavisado e irresponsável operário nem recuperou a relíquia, nem devolveu-a à sua dona e, ao contrário disso, jogou-a ao lixo, nos socavões daquele riacho poluído e fétido.  Foi aí quando o mundo desabou à sua porta. Chororô, berreiro, confusão, bate-pé, bate-boca  e o caso foi parar na justiça. Moral da estória: uma indenização de hum mil reais pelo antiquário, para desespero e desgraça do irresponsável operário. E esse famigerado e malsinado ba-fa-fá ainda sobrou para mim que andei, a pedido do réu-vencido, barafustando os cacos processuais que restaram  em indenização. A minha peregrinação não deu em nada.
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Jubenir é um velho policial aposentado - do tempo em que policial era "soldado". Numa jogada inteligente ele tem um negócio numa área à frente de sua casa, que consiste na compra e venda de materiais de construção, usados.  Ferros cano, madeira, caibros, tábua, louças sanitárias, cama, fogão, mesa , forro de madeira e PVC e outros que tais.  Sou cliente do Jubenir, gosto de velharia.  E passo por lá, constantemente para ver as "novidades". Recentemente estive por lá e o que vejo, com várias pessoas em volta, admirando o achado? Uma mala das antigas, do tipo baú, levemente prejudicada à laterais por cupim, forrada com aquele papel característico, e no resto perfeita, estilizada. E o pessoal em volta olhando e comentando. E eu... "filmando"!

A coisa 'dinossaureana' que lembra a 2ª. Guerra Mundial é um achado perfeito! Proteções metálicas curvilíneas e estilizadas nos cantos, nas laterais, fechos metálicos de segurança, alças laterais, que resistem ao tempo sem ferrugens, gritam sobre o acabamento e a "beleza" e o esmero do operário que insculpiu aquela coisa. Jubenir o tem à mostra pode vender por vinte reais, mas deixa por quinze; também pensa em ficar para si, para guardar ferramentas. Disse. E eu, fissurado por antiguidades fiquei imaginando que ali, naquele baú "de guardar as coisas", ali viveu-se laços da família... do conservadorismo e da história.

* Viegas questiona  o social