(texto reproduzido e ampliado)
Anos 50. Estamos num longínquo sertão, de casas distantes entre si, raras corrutelas de umas quatro ou cinco casas, "uma perto da outra", onde o povo sobrevive de pequenas roças "sujadeiras", quase ao fundo do quintal. Lavouras de mandioca, arroz, milho e feijão. Lugar esse em que a noção de civilidade vem de um distante ronco de um ou outro caminhão que passa numa estreita trilha de chão vez por outra, no verão.
Noção de civilidade que vem da luz de um raro Pretromax de que se tem notícia por ali; de um retrato de candidato que fica na parede por anos sem fim e por algum pedaço de papel de revista que a gente encontra perdido pelo chão. E o rastro de consumo vem dos vestidos de chita, dos ferros de foice e machado, do maços de cigarro Continental, das pilhas de rádio e lanterna e até de ressecados sapatos e chinelos em dias de festa. E o modismo está na brilhantina dos cabelos, no salivar do bombom píper, no mastigar do cravinho e no perfume comprado em porções, nas bodegas, em dia e na hora da festa, que é para "rescender".
Esse é o meu lugar feito de capoeirões, gente analfabeta. Os letrados com leitura da "cartilha" e, no máximo, primeiro livro, segundo livro. Tudo gente de mãos grossas, pés encouraçados de puro chão, queimados de sol a sol. Todos filhos e crias do roçado, da quebra de coco, do pilão e mão de pilão e água de cacimba distante, dessas que secam ou que se "raspam" ou espera minar, em tempos de verão. Tudo peleja rude, primária, dos tempos do Brasil-escravo, onde as pessoas mal conhecem dinheiro. Esse é o meu lugar. E agora nós vamos fazer a compra na BARRACA.
A BARRACA é o comércio. Neste caso, fica a uma distância de um quilômetro, mais ou menos. A barraca é um pequeno quarto que em princípio fica(va) na parte interna e íntima da casa. E lá vende-se: açúcar, café, fumo, charuto, sal, querosene, sabão, novelo de linha, agulha, papel-abade; brilhantina. Basicamente isso. Mais tarde, as BARRACAS saíram das entranhas íntimas da casa e postaram-se à frente. Agora já tem um "grode de cachaça", um papel com pauta, bombom, lápis e borracha e até lapiseira esferográfica.
Muitas dessas BARRACAS sobrevivem da TROCA. O freguês leva dois quilos, três quilos de coco, ou de tucum e troca por fumo, querosene, sabão. Tudo "coisa pouca", cujo montante não passa de cinco ou dez reais em moeda de hoje. Uma penúria! O barraqueiro, além do prestígio popular e de ficar por trás do "barcão", era considerado um rico, endinheirado. E se juntasse aquelas bugigangas todas, em dinheiro de hoje, daria uns quatrocentos ou quinhentos reais. BELAS ÁGUAS, fica distante, uns quatro ou cinco quilômetros, vejo eu hoje, pois que naqueles tempos, aquilo ficava mesmo era no "fim do mundo", "longe pra danar". A gente sofria quando tinha que ir para as barracas de Belas-Águas. Além da distância, havia poucas casas na estrada e a gente tinha medo de andar sozinho. E não tinha uma "viva alma", que nos fizesse "companha". E ainda para completar tem que atravessar riachos e sombrios igapós - Rio Grande e Rio de Jardim.
Aqui em BELAS ÁGUAS, onde tem uma casa "perto da outra", as barracas são mais sortidas e, em relação àquelas outras, pode-se dizer que "tem de tudo a tudo". E minha mãe se descabelava quando a gente ia comprar qualquer coisa em Belas Águas, porque "quase a gente não voltava mais". Aí entrava a lei: "vou cuspir no chão". "E ai de ti se não chegar logo-logo". Era uma ordem. Aquilo soava doído de taca nas costas.
Ali na barraca, por vezes, os fregueses que caminhavam quase uma légua de distância, encostavam-se ao balcão e quase não queriam mais sair. Aquilo tinha múltiplos motivos: um deles porque o sujeito estava exausto da caminhada; o outro porque entre uma "pinguinha" e outra - uma cusparada ali no chão fazia parte da rotina. O outro motivo é que sua presença viva ali ao pé do balcão era o retrato da "fidelidade" ao barraqueiro e um bom motivo para espetar um FIADO.
Deixando Belas Águas, nós vamos a outras encostas: tem São João; tem Sertãozinho; tem São Benedito; tem Rio-do-Meio; tem Nova-Aurora. Por aí já tem rádio. E rádio de seis faixas, oito faixas, são a febre de dinheiro e de poder, no momento. O sonho de consumo de qualquer um. Aquelas duas varas de taboca ao lado da casa, com o fio esticado lá em cima fazem a antena do rádio e o indicativo de poder e de dinheiro. E só os BARRAQUEIROS e outros igualmente poderosos tinham um rádio.
O barraqueiro usava o seu receptor para atrair gente que vinha de longe "só escutar rádio". E aí, recostado ao balcão, uma pinguinha de vez em quando! E o barraqueiro fazendo negócio! Empreitas de coivara e capina; compra-e-venda de arroz na folha; um quilo de peixe seco, uma mexida de farinha e até uma troca de facão surgiriam de oportunidades essas, ali, ouvindo o rádio e emborcando pinga, onde o sujeito chegou em quase uma hora de pé no chão.
Os BARRAQUEIROS - além da atração pelo rádio, faziam à frente do seu comércio um "campo de bola". Aquilo "juntava gente", fazia movimento! E rolava uma pinga, um bombom piper, um cigarro, um fumo caipira, um martini, um cinzano, um são joão da barra, uma "meladinha" (pinga-com-mel), uma pilha de lanterna e até mesmo um "foguete de três tiros", para comemorar a vitória no jogo. Tudo gente sem camisa. Era negócio ou não era?!!
"Viajando" por entre as BARRACAS por aí, acabei perdendo o caminho da primitiva barraca, uma delas que, aliás, fica(va) a "um estirão" da minha morada. Certa feita o meu pai me mandou comprar um açúcar. Era um tempo de São João e a gente, moleque, gostava de soltar uma bomba (um traque), só para ver o estouro. Na hora da compra, prosa-vai e prosa-vem, perguntei se poderia diminuir no açúcar e completar com umas "bombas". Negócio fechado! Estourei logo as bombas ali mesmo, feliz da vida e levei outras tantas para casa. Entreguei o açúcar e... fiquei quieto.
Dias depois, a dona mentira de pernas curtas me entregou. Aí já viu: foi taca! Aquela taca "explicada", pausada, justificada. Apanha uma para não fazer mais isso; apanha outra para não fazer mais aquilo; apanha outra por causa daquilo lá. E assim se fez até acabar a ladainha. E até o meu pai achar que estava superada a questão. Eu, heim? Bomba? Nunca mais. Nunca mais!!! Só em pensar, até hoje tenho medo.
* Viegas questiona o social. E-mail: viegas.adv@ig.com.br
Edição Nº 14921
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