Naquele meu chão feito a foice e facão, mutilado em crendices e roças de crua sobrevivência - tanto quanto ainda o é, entre tantos roceiros analfabetos que ali mourejavam, ARGEMIRO DE BASTIÃO era mais um entre os demais. Filho da trinca de Bastião Folhá, ali em terras de Antônio de Anjo, Argemiro era mais um sobrevivente da peleja do sol a sol em meio àqueles que punham o dedo como assinatura. Ainda cedo juntou-se com Godença de João-Guegué e lá se foi uma queira de filhos, todos entregues à pobreza e à vida crua herdadas do pai-Argemiro.
Já maduro, Argemiro de Bastião mudou-se daquele lugar com mulher e filhos e dele não mais se teve notícias. Sabia-se, no entanto, que morava pras bandas de São Vicente Férrer ou São João Batista, “praquelas bandas”, como diziam - um lugar, aliás, nem tão longe assim, mas que fazia-se distante à falta de estradas, de meios de comunicação. E daí a “lonjura” que se fazia no imaginário dos seus parentes e aderentes. Ou noutras palavras: “Argemiro abriu a terra e se meteu”, que era como assim também diziam.

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Eu era ainda um estudante de Direito, vinte e poucos anos, quando tomei conhecimento de que ARGEMIRO DE BASTIÃO matou um homem e encontrava-se preso na cidade de São João Batista. De livre e pessoal iniciativa atravessei o mar, peguei carona em cima de carroceria e fui ter com Argemiro, na prisão. Argemiro, naturalidade e clareza, contou-me o fato a modo seu, disse que primeiro pagou pinga a pedido da vítima, depois foi chicoteado por esta e em luta corporal iniciada pelo sujeito feriu-o com a sua (dele) própria faca. Foi com essa versão que me propus à defesa.
A comarca de São João Batista, então sob a direção do eminente juiz Dr. JÚLIO ARAÚJO AIRES - ressentia-se de dificuldades primárias. Não havia promotor, muito menos advogado, o que levava o juiz a contorções para fazer justiça e assim nomear pessoas leigas à defesa. Eu, então, em meados do curso de Direito, fui aceito plenamente quer pelo juízo como pelo acusado. E, doravante eu ali, pelo meio.
O júri veio de ser realizado quando eu estava às vésperas da formatura em 1972, motivo pelo qual não colei grau com a minha turma; enfrentei percalços à colação em solenidade exclusiva e ainda fui apontado (soube depois) como um “desertor” que esteve à margem (marginal) no processo de conclusão do curso. Pura intriga mas, ainda assim, faziam-se os ossos e os louros e o batismo de uma profissão que carrego faz 38 anos. E que só apanho e tento aprender e vejo louvaminhas e tamancos endeusados a cada novo dia.
O Júri de Argemiro para mim foi batismo, realização, foi meta. O tribunal do júri era uma praia dos meus sonhos em que só entrei e não consegui sair. Até hoje! Apanhei e continuo aprendendo; é como digo: Argemiro foi condenado a seis anos de reclusão, mas diante de um calouro/neófito, ainda no bê-a-bá da escola, imagino que fiz a minha parte diante de um promotor-escolado que pedia 30 anos para o matador, filho de Bastião Folhá. Imagino, como consolo de quem sai ferido na luta que, se fosse hoje, o jogo seria outro. E nunca mais tive notícias de Argemiro de Bastião.

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Mais tarde, quando voltei de férias à casa e ao chão dos meus pais e por ali uma festança, quem eu vejo com os braços cruzados, na dele, assim... recostado com o pé sobre a parede? ARGEMIRO DE BASTIÃO!!! Fui lá, cumprimentei-o. Disse-me que havia cumprido a sua pena, falava solto, leve sorriso e esbanjava um ar de mansidão, segurança e tranquilidade. Foi como pude interpretar o ator, sob o personagem.
Em seguida, ainda na festa, vejo uma “roda” de gente. Era Argemiro, ao centro, qual um artista ao picadeiro, convergindo todas as atenções, ao contar sua passagem pela penitenciária, suas bravatas e experiências na prisão. Observei que ele capitalizava seu tempo na penitenciária para posar de “herói”, “capitão” ou “chefe” naquele mundo de incautos em pés no chão. Pensamento, ação e herança maldita da penitenciária. Era ele em conversa aberta, em carne e osso, como se dissesse: “eu sou o cara!”.
E sentia-se como que aplaudido como o “novo herói”, que atravessou incólume o fogo e as trevas da penitenciária. Logo ele, agora, cujo filho vindo do garimpo adquiriu-lhe uma terra, situou os pais e ele, Argemiro, além de cavalo de montaria e da fama (negra) do submundo da penitenciária, também tinha terras próprias para suas tarefas. Realmente ele era o cara!!! E, novamente, nunca mais tive notícias de Argemiro de Bastião Folhá.

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Recentemente, estive com o meu irmão AFONSO e comentamos sobre Argemiro de Bastião. Disse-me Afonso que Argemiro foi a uma festa no Canta-Galo e o reggae rolava solto e pesado. Argemiro, que não era de dar ponto sem nó, foi lá, duas pingas no juízo e pediu Waldick Soriano. Negativo! Ah, pra quê?! Argemiro quebrou tudo e não deixou pedra sobre pedra. E desafiava: “Agora quem achou ruim / baixa boca no capim / e vem em mim”. E insistia: pode vir de dois a dois; de três a três.... Trinta e oito na cintura e peixeira viva reluzente e reluzindo nas mãos dispostas a tudo...
Foram então “decretado” chamar a MATA-SETE, uma espécie de terror do lugar, a quem narraram o acontecido e pediram ajuda para amarrar o desordeiro. Seu Sete ainda se arremeteu à empreita, mas no batente da saída da casa resolveu perguntar: “Sim, mas quem é que está lá?”. E quando lhe disseram que era ARGEMIRO DE BASTIÃO, aí Mata-Sete aconselhou: “Gente, larguem Argemiro de mão. Será que vocês não têm juízo?”.
Afonso também me conta que, certa feita, Argemiro de Bastião, chegando à casa de Dona Cafusa, encontrou a um canto uma faca tala-larga, 12 polegadas, pontiaguda, amolada. Argemiro pegou a faca, contorceu-a sobre os braços e admirou-a em “horas esquecidas”. Mostrava-se enfeitiçado pelo “ferro”. No pensamento, Dona Cafusa esconjurou-o o quanto pôde e quando Argemiro de Bastião saiu dali ela destruiu para sempre aquela faca. “Ave-maria-cruz-credo”!!!

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Este tema eu mando para o desembargador Júlio Araújo Aires (aposentado), então juiz das minhas primeiras causas; mando para Adalberto Campos, VAGUI Dominice, Diolindo, Zeca de Neco e Joca Sapateiro, amigos de um tempo, filhos de São João Batista, uma terra em que um dia sonhei em viver ali.

* Viegas é o olhar do pássaro sobre o galho e questiona o social. Email: viegas.adv@ig.com.br