Guardo comigo, perdido na mente, uma velha frustração que feriu, doeu e marcou, mas que o tempo, um implacável divisor de águas, acabou por dissuadir. Era moleque, oito, nove, dez anos de idade, quando deixei a casa paterna para buscar a escolaridade na VILA. No estradão de quase uma banda da manhã, eu ficava "vendo e ouvindo" o ressentido choro de minha mãe, pelos cantos. Essa partida é um exercício de memória a que sempre recorro para não deixar cair ao esquecimento. E, enquanto mamãe chorava pelos cantos, eu em coração apertado, montado à garupa do cavalo de meu pai, partindo para um universo plenamente desconhecido e sequer imaginado. E longe de imaginar que aquele "adeus", ainda que me conferisse voltas temporárias, era, contudo, uma infindável separação da casa paterna.
Na VILA, quer dizer, na "casa alheia" - uma trajetória da qual me ufano. E guardo nas prateleiras da lembrança e da gratidão esse caneco e diploma de honra ao mérito que para mim foi o exercício de convívio e aprendizagem na casa alheia. Moleque, o dia a dia na casa era uma batalha em tempo integral, desde o pré-amanhecer, até lá pelas nove da noite, depois da oração obrigatória, em convencional joelhos ao chão, frente ao quadro do Sagrado Coração de Jesus - num gesto católico, como eram aqueles anfitriões. E lá se vão 16 horas diárias de labuta contínua desse quotidiano, inclusive a escolaridade, o preparo da lições e intermináveis tarefas domésticas. E lá se vão quatro anos nessa maratona.
Era uma casa de carcamanos feita de três irmãos: um varão e duas varoas - todos celibatários, "moços-velhos", convictos. A vida ali era um reformatório. Uma oficina em ferro e fogo. Lei das 12 Tábuas! Mais tarde e até os dias de hoje, agradecido e olhando noutra visão, vejo que, além do quartel, a vivência ali foi mais que um laboratório, onde aprendi as lições da vida; cidadania, formação do caráter. Aprendi também que o ouro em pó ou os milhões espalhados, desde que não nos pertençam, são sempre "coisa alheia". Intocáveis, portanto. E foi dessa oficina em ferro e fogo que fui construindo para ter mãos limpas. E nessa maratona, escolaridade vigiada e sob cobrança, tive também várias tarefas indefectíveis e obrigatórias. Implacáveis. É aqui onde entra o MERCADO E O AÇOUGUE. É aqui onde guardo perdidas e soterradas na mente as frustrações que o tempo - e só o tempo - serviu de bálsamos a essa ferida.
Todas senão quase todas as manhãs, "comprar carne no mercado" era uma obrigação. No caminho, quer dizer, na via pública, o gado deitado ao chão - ora aqui ora ali - tomava conta da rua. Por vezes na carreira, fugia dos animais bravios. E aí, oito, nove, dez anos de idade o medo do gado constituía-se numa tortura psicológica. Muitas das vezes, ao chegar ao prédio do MERCADO, este encontrava-se ainda fechado. Aquele odor característico do ambiente era, para mim, outra tortura psicológica. E então aguardava-se em "fila", pelo lado de fora, até à chegada do encarregado. E, quando a porta se abria, voávamos em bando rumo ao "talho" (ao box). Tantas vezes os mais fortes furavam a fila e então os "pixotes", assim como eu, sobrávamos para o fim da fila. Era um drama-nosso!
Quando a carne, ainda trêmula, pendurada em vara, carregada por dois homens, chegava ao açougue, por volta das sete horas, sete e meia e às vezes mais tarde, as filas já perderam o sentido e o povo alvoroçado, espalhava-se pelos três lados do "talho". E aí o ambiente era tomado de uma gritaria enlouquecedora e sem fim de todas as gentes de todas as idades. Eu, então, gritava usando o nome do dono da casa: "dois quilos para F. A.", imaginando que aquele nome era uma moeda de troca, um poder de compra. Ledo engano! Não era! E haja intermináveis gritos por todos os lados. Uma incivilidade sem precedentes. Uma marca que só o tempo conseguiu apagar.
Por vezes, quando a carne mais que demorava chegar ao mercado, moleques convidavam-me entre si: "vamos na matança; vamos na matança". E aí tocavam-se aos bandos rumo à matança (ao matadouro). Por vezes, chegando ali, o gado mal havia acabado de chegar. Então eu me via na espontânea constrição de assistir ao espetáculo da morte brutal do animal. Aquilo me marcava profundamente. Era outra tortura psicológica. Por conta disso, até hoje sou resistente à carne de gado.
A "carne" na grande maioria das vezes era puro osso e "pelanca". Era um drama! Chegava-se em casa com aquilo pendurado em gancho e haja protesto, blasfêmia. Insatisfação. Aquela carne de péssima qualidade com um gado que tinha intimidade com aftosa e carbúnculo e desnutrição; que não conhecia vacina nem sal mineral e quase todos só o "capim nativo e rasteiro" do campo - era uma tônica geral naquele tempo, naquele chão. E se a "pesada" fosse para criança, aí então o açougueiro deitava e rolava. E, em casa, haja lamúrias!
Na volta para casa, aos oito, nove, dez anos, aquela "carne" pendurada ao gancho, arrastava-se sobre as minhas pernas em calças curtas. E tinha que correr para o banho para muitas vezes chegar já atrasado à escola. Um acesso que só acontecia porque eu morava na casa da diretora daquele meu inesquecível Grupo Escolar. E, ainda assim, sob olhares de censura de outros professores pela exceção que ali se praticava. Quiçá não sabiam os censores que aquele atraso devia-se ao AÇOUGUE, ao MERCADO?
Nesse batalho marcante, certo dia, oportunidade única, atrelei-me ao "talho", bem ao lado do marchante, um semi-deus em suas tamancas. E me pus a gritar: "dois quilos para F.A.". E citava o nome do meu chefe como poder de compra. Gritei tanto que o marchante desfechou em mim um fulminante olhar de raiva, de ódio, de ojeriza, de desprezo - como se o seu olhar tivesse o poder de uma bala certeira ou de uma faca afiada. E tinha! E doeu ferido por muitos anos a fio - numa lembrança doída, amarga e sentida que só o tempo, esse implacável divisor de águas, consegue apagar.
* Viegas é advogado e questiona o social.
Edição Nº 14939
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