Guardo comigo, perdido na mente, uma velha frustração que marcou e doeu mas que o tempo, um implacável divisor de águas, acabou por dissuadir. Era moleque, sete anos de idade, quando deixei a casa paterna para buscar a escolaridade na VILA. Na estradinha, em viagem de quase uma banda do dia, eu ficava "vendo e ouvindo" o ressentido choro de minha mãe, pelos cantos. Partida essa e outras que se tornam rotina em minha vida e fizeram de mim uma "visita" na casa dos pais.
Aliás que de partidas essas, faço um exercício de memória a que sempre recorro para não deixar cair no esquecimento. E eu ali, montado à garupa do cavalo de meu pai, partindo, em princípio, para um universo plenamente desconhecido e sequer imaginado. Incógnito. E longe de imaginar que aquelas partidas ainda que me conferissem voltas temporárias, era, contudo, uma infindável separação da casa paterna. Era "DEUS escrevendo certo por linhas toras em minha vida". Foi como vim a compreender.
Na VILA, quer dizer, na casa alheia - uma trajetória da qual me ufano e guardo nas prateleiras da lembrança esse troféu e diploma de honra ao mérito que para mim foi o exercício de convívio, trabalho, regras de sobrevivência e aprendizagem na casa alheia. Moleque, o dia-a-dia era uma batalha em três expedientes: pela manhã na escola, à tarde nos afazeres domésticos, parte nas tarefas escolares e à noite mais tarefas escolares. Era catorze, quinze horas de labuta diária!
Era uma casa de carcamanos feita de três irmãos celibatários, um varão e duas varoas. A vida ali era um "reformatório". Uma oficina em ferro e fogo. Mais tarde e até os dias de hoje, olhando noutra visão, vejo que além do quartel onde aprendi a amar, honrar e defender a pátria. Vejo que ali foi mais que um laboratório, onde aprendi as lições da vida e formação do caráter. Aprendi que o ouro em pó ou os milhões espalhados e expostos, desde que não nos pertençam, são sempre "coisa alheia". Intocáveis, portanto! E foi nessa oficina em ferro e fogo que fui construído par ter mãos limpas.
Nessa oficina diária é onde entra o MERCADO, O AÇOUGUE. É aqui onde guardo perdido e soterrado na mente as frustrações que o tempo - e só o tempo - serviu de bálsamo a essa ferida. Todas, senão quase todas as manhãs, "ir comprar carne no mercado", era um dever. No caminho, quer dizer, na via pública, o gado deitado ao chão - ora aqui ora ali, tomava em parte, conta da rua. Por vezes na carreira, fugia dos animais bravios. E aí, nove, dez anos de idade o medo do gado constituía-se no que depois vim a entender como uma tortura " física e psicológica".
Muitas das vezes ao chegar ao prédio do MERCADO, este encontrava-se ainda fechado. Aquele odor característico do ambiente era, para mim, outra tortura psicológica. E então aguardava-se em "fila", pelo lado de fora, até à chegada do encarregado. E, quando a porta se abria e voávamos rumo ao "talho" (ao box), tantas vezes os mais fortes tomavam a frente e os "pixotes", assim como eu, sobrávamos para o fim da fila.
Quando a carne chegava ao açougue, por volta das sete horas e às vezes mais tarde, as filas já perderam o sentido e o povo alvoroçado, espalhava-se pelos três lados do "talho" e aí o ambiente era tomado de uma gritaria enlouquecedora, e sem fim de todas as gentes de todas a idades. Eu, então, gritava usando o nome do dono da casa; "dois quilos para...", imaginando que aquele nome era uma moeda de troca. Ledo engano. Não era. E haja intermináveis gritos por todos os lados. Uma incivilidade sem precedentes. Uma marca lacerante e perversa que só o tempo conseguiu apagar.
Por vezes, sete e meia e a carne ainda não havia chegado ao mercado e os moleques convidavam-se entre si; "vamos na matança; vamos na matança". E aí tocavam-se aos bandos rumo à matança (ao matadouro). Por vezes chegávamos ali aos bandos e o gado mal havia acabado de chegar. Então eu me via na espontânea constrição de assistir ao espetáculo da matança. Aquilo me marcava profundamente. Era outra tortura psicológica. Por conta disso, até hoje sou resistente à carne bovina.
A "carne" na grande maioria das vezes era puro osso e "pelanca". Era um drama! Chegava-se em casa com aquilo pendurado em gancho e haja protesto, blasfêmia. Insatisfação. Aquela carne de péssima qualidade com um gado que tinha intimidade com aftosa e carbúnculo e não conhecia vacina nem sal mineral, quase todos só o "capim nativo e rasteiro do campo. Era um trauma!
Aos nove, dez anos, carregar aquela "carne" pendurada ao gancho, arrastava-se sobre as minhas pernas em calças curtas. E tinha que correr para o banho para, muitas vezes chegar já atrasado à escola. Uma permissão que só acontecia por que morava na casa da Diretora Grupo Escolar. E, nessa maratona, havia olhares atravessados de insatisfação pela proteção ao atraso que, quiçá não sabiam outros, vinha do AÇOUGUE.
Nesse batalho marcante, certo dia atrelei-me ao "talho, bem ao lado do marchante e me pus a gritar; "dois quilos para..." e citava nome do meu chefe como moeda de troca. Gritei tanto que o marchante olhou em mim com aquele olhar de raiva, de ódio, de ojeriza, de desprezo - como se o seu olhar tivesse o poder de um bala certeira ou uma faca afiada. E teve! Durante anos a fio, aquele lancinante olhar de ódio e desprezo, assim como aquele ambiente de mercado, açougue e matança foram uma frustração doída, amarga e sentida que só o tempo, esse implacável divisor de águas, conseguiu apagar.
E só mais tarde, tocado pelos ventos da plebe ignara, vim a entender que a carne boa que ficava enrustida debaixo do balcão destinava-se, ao juiz, ao promotor, ao coletor, ao prefeito, aos padres e a outros graduados que não entravam em fila nem precisavam gritar.
" Viegas questiona o social
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